quarta-feira, 20 de julho de 2011

QUANDO EU TOCO PIANO

Ser viciado em piano é pior que ser apaixonado por esporte, festa ou jogo. O piano domina as mãos a cabeça a mente e a alma.
O futebol, por exemplo, tem o problema do campo, pois não existem muitos e dá muito trabalho o antes e o depois do jogo. O piano tem problema com os vizinhos. Nem todo mudo gosta de ouvir, por isso, os poucos momentos que me sobram para tocar, são os horários que eu apelidei de suave intervalo. Com o tempo eu percebi que havia momentos em que eu não fazia superposição sonora nos ouvidos dos meus vizinhos, era como se eles estivessem no vácuo onde o som não penetra ou era como a nota musical que só fica no compasso cercada de pausas ou ela sozinha preenche todo o intervalo. Meu suave intervalo era a pausa.
Durante a pausa do horário surdo para eles eu toco piano. Não sou muito versátil, gosto de tocar aqueles clássicos onde as notas têm comprimentos de ondas diferentes. São as assimétricas, coisas de anteneiro metido a pianista.
Quando eu toco piano, toco virado para a janela como se esta fosse um portal capaz de ligar dois mundos. Nunca ninguém no meu mundo me viu tocar piano de olhos abertos.
Quando eu toco piano, posso imaginar tudo. Primeiro que eu não estou ali, que o piano é só o meu aparelho de tele transporte. Segundo que a música é só o protocolo comum de todos os seres humanos e que faz seus comportamentos modificar-se. Terceiro que eu sou até capaz de tocar no impossível.
Tem músicas que me trazem a sensação de estar velejando na Lagoa dos Patos, tem músicas que me levam a escorregar nas areias dos lençóis maranhenses. Tem músicas que me levam a caminhar sobre a relva de campos macios cercado por uma vegetação cheirosa da mata atlântica, lá é para onde eu mais gosto de ir, lá tem as árvores frondosas que inspiram mistério e magia e contos de fadas, foi de dentro de uma árvore que o Deus da música nasceu.
Um piano basicamente compõe-se de teclado e caixa de som. Na caixa de som, estão os 88 martelos e as 88 cordas. No meu piano a caixa de som é verde.
Quando eu toco piano eu sou eu, mas ás vezes eu sou o teclado, outras vezes, eu sou a caixa verde e outras, os três são um só.
Eu sou o teclado quando meus dedos, ao bolinarem o marfim, me fazem confundir se é eu ou o teclado que está tocando. Eu sou a caixa verde quando me iludo que o som nasce das minhas mãos.
Eu o teclado e a caixa verde em certos momentos entraramos em um estado tamanho de acoplamento que o som vasa pela natureza. Quanto mais bem nós nos acoplamos, melhor o som voa no ar em formas de ondas capazes de envolver mesmo quem estiver mais desatento. Todos que me ouvem estão na minha LAN, que é o meu salão de devaneios onde eu posso se quiser até voar.
Quando eu toco piano, algo que não é físico passa de mim para o teclado. O teclado que é bem mandado obedece e transporta para a caixa verde a minha vontade. A caixa verde faz o milagre, de transformar a minha vontade em música. Esta se propaga no ar. Balzac disse que há três coisas que não deixam vestígios. Um peixe na água, um pássaro no céu e um homem numa mulher. Eu acrescento na quarta: A minha música no meu piano.
Orpheu é um ancião que mora do outro lado da rua, bem em frente á minha casa. Orpheu é cego, nasceu cego, não tem o conceito de cores, mas sabe tudo sobre som. Dizem que pelo som dos passos de uma pessoa caminhando na calçada, ele sabe desta pessoa a nacionalidade e religião se está feliz ou triste, se é rica ou pobre, se é boa ou má. Eu e ele nunca conversamos, na verdade ele me irrita e acho que ele sente o mesmo por mim.
Quando eu toco piano, Orpheu pega uma cadeira, senta sob a sombra de uma árvore frondosa de caule grosso do seu quintal e presta toda a atenção na minha música. Uma leve desafinação e lá está aquele velho irritante batendo com a bengala na cerca de ferro. Para aquele tirano da freqüência, não interessa se fui eu o teclado ou a caixa verde. Para ele o som que toca os seus ouvidos não pode ter ruído, tem que ser puro, no tempo certo, na dota afinada, na amplitude perfeita. Isso me irrita. O Orpheu não tolera nenhuma imperfeição sonora.
Fiz um plano para matar o Orpheu. Eu haveria de me vingar daquele carrasco. Ele haveria de ser o corpo delito de um crime sem solução planejado por mim.
Eu e ele sabíamos que se duas notas numa música tem freqüências ligeiramente diferentes elas estão desafinadas, então surge um batimento como se fosse um som áspero, uma dissonância que resulta da interferência destrutiva das duas ondas quando estas ficam em fase ou em oposição de fase. Ai estava a arma mortal do crime. Eu iria matá-lo com a minha música.
Nos dias de Setembro o horário das seis horas, trás consigo uma paz adocicada no final da tarde, pela temperatura morna, pelo vento úmido, pelo farfalhar das folhas nas árvores e por uma vontade em todos de que tudo fique em suave silêncio. Esta seria a cena do crime.
A minha rua é sem saída, não tem tráfego. O sinal dominante sou eu quem gera quando toco piano. Esta seria a arma do crime.
O palco estava perfeito. Eu, a música e o velho. A munição que eu usaria seria a interferência e haveria de matar um dos três. Não poderia ser eu a morrer, porque eu estava protegido pelo plano. Não poderia ser a música a morrer porque ela era a arma do crime. Só poderia ser o Orpheu. Ele não iria agüentar aquela apoteose.
Com acordes dissonantes, comecei a tocar Desafinado de Vinícius e João Mendonça no ritmo de bossa nova. João Gilberto foi genial quando criou uma maneira de fazer música usando os tons dissonantes que é uma batida diferente no meio do som. O que é isso? Ora, superposição construtiva é claro.
Orpheu se levantou num pulo da cadeira, com a bengala erguida ameaçando a cerca de ferro.
Se você disser que eu desafino amor. A palavra desafino na música, tem um acorde dissonante no i que é uma harmônica da nota natural. A bengala erguida tremia na mão do velho cego. Mas não descia.
Saiba que isso em mim provoca imensa dor. De novo eu agredia e o cego tremia. A palavra imensa na música é um desaforo musical, uma interferência normal.
Toquei a música até o fim – Que no peito dos desafinados também bate um coração. Então parei.
Orpfeu que parecia uma estátua olímpica foi murchando lentamente, até que virou-se e com passos trêmulos entrou para dentro de casa. Não voltou mais.
Eu ainda tocava piano. Mas o tempo foi rolando. Passou setembro, outubro, novembro e chegou dezembro. Do outro lado da rua ninguém mais sentava debaixo da grande árvore. Só o meu olhar ocupava aquele lugar. Parecia que o meu plano havia funcionado.
No dia trinta e um de dezembro, um pouquinho antes da meia noite, ouvi o som de um violão tocando “”chega de saudades””. Logo um violão, nenhum outro instrumento harmoniza melhor com o piano quando se toca bossa nova.
Sabem quem era? Era o defunto.
Vai minha tristeza
E diz a ela que sem ela não pode ser,
Diz-lhe, numa prece
Que ela regresse porque eu não posso mais sofrer.
Chega de saudade
a realidade, É que sem ela não há paz
não há beleza
É só tristeza e a melancolia.
Que não sai de mim, não sai de mim, não sai
Agora, quando eu toco piano um violão do outro lado da rua me acompanha. Fazendo superposições e marcando o tempo. Ás vezes em faze ás vezes atrasado, mas sempre em harmonia. Brincamos de dobrar e dividir a freqüência com os sustenidos e as oitavas. Ruído? Ruído é que nem limão. Com açúcar e cachaça fica ótimo. Até fora do suave intervalo estou tocando, claro, fiz parceria com um Deus da música.
Repito para vocês, ninguém no mundo vai me ver ou me viu tocar piano de olhos abertos.


FIM

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