sábado, 30 de julho de 2011

O GUARDIÃO DA RESERVA

Nos entroncamentos, existe muito mais chance de se somarem as coincidências que nos fazem perceber que tudo se move comprometidamente entre si.
Tudo está completamente envolvido. Nada está sozinho ou é independente. O que existe, é uma grande teia com infinitos caminhos para chegar a um lugar determinado. Uma molécula do oceano atlântico necessita da outra molécula do oceano pacífico para que o nível dos dois oceanos se mantenham. Nada falta nada sobra, tudo se relaciona. Animais plantas rios e terras são responsáveis hoje por aquilo que será um dia o nosso futuro e que pessoas podem dedicar a sua vida na preservação daquilo que hoje tem pouca chance de ser o futuro amanhã.
A Prefeitura municipal de Erechim fica num entroncamento e tem uma fachada que parece risonha, pois sua construção é arredondada com uma grande escadaria dentuça na frente que sugere alegria. Sobre a escada, antes de entrar no grande arco da porta, existe um patamar, como se fosse uma grande língua. O prédio sugere um semblante alegre.
Foi ali que aconteceu. Foi ali que mais uma vez, senti um dos elos da grande teia. Não um elo qualquer, mas aquele que num certo ponto ajuda a prender a teia para que esta se estenda por todo o espaço-tempo.
Tudo começara um dia antes, quando por necessidade, fui comprar uns comprimidos na farmácia. Meus filhos que acham que tudo sabem me levaram a um cardiologista para uma consulta e este médico me condenou a engolir três bolinhas da cor de leite, todos os dias.
Obedeço ao sabido doutor com os comprimidos, não por achar que preciso, mas por gostar do rapaz que a uns poucos vinte anos atrás, quando estávamos na estação das frutas, pulava a cerca da do meu quintal para colher mangas madura da árvore frondosa que ficava bem no meio do pátio. Nunca disse para ele que eu sempre o vira pela fresta da janela fechada. Gostava do jeitão do garoto. Ele não se importava se estava sendo vigiado ou não. Pulava a cerca e ficava um tempão olhando para cima da árvore.
Caminhava em volta do tronco, parava andava mais um pouco, avaliava, girava, escolhia, pensava e por fim se decidia. Como um macaco, subia a grande árvore até o alvo e colhia a fruta escolhida. Sempre duas nunca em todos aqueles anos que ele invadiu minha árvore, ele colheu mais do que duas frutas de cada vez. Eu achava justo, ele não desperdiçava.
A árvore ainda está lá. Provavelmente vai produzir mangas por muito mais tempo que eu e este doutorzinho vamos viver. Ele não sobe mais na árvore, mas como se houvesse um compromisso moral, nunca me cobra a consulta, mesmo quando eu insisto em pagar. Nestes momentos ele sempre me diz:
-O pagamento é o sabor que o passado tem.
Rio e nunca me dou por entendido.
Após a última consulta, parti para a farmácia para comprar o remédio.
O boticário, vindo lá do fundo entre as prateleiras, ficou com o pacotinho na mão sem me entregar enquanto cumprimentava um amigo que passava pela frente da farmácia.
-Bom dia Reinaldo como tem passado?
Virei e olhei a pessoa na calçada para ver se também não conhecia. Nas cidades do nosso interior, o cumprimento é muito apreciado. Não conhecia. Reinaldo era um homem de uns oitenta e poucos anos, altos e magros, Sob a aba do chapéu na cabeça, pude perceber um rosto de traços retos com um queixo quadrado e bem definido, sem uma única linha suave no rosto. Reinaldo levou a mão ao chapéu e sem erguê-lo fez numa saudação. Não disse nada e continuou seu caminho.
Nos poucos segundos que vi o rosto de Reinaldo, senti algo estranho, não sei se no olhar ou no jeito antigo, mas a sensação que tive, foi de ver um homem feroz.
-Amigo seu? Perguntei ao boticário que também era um ancião.
-Sim, conheço-o toda a minha vida, nossos pais já eram amigos. Da infância até hoje muitas poucas vezes ouvi a voz do Reinaldo. Até porque ele é quase surdo. Quando éramos rapazotes, saíamos em grupo conversando e ele nos acompanhava sem dizer nada. Se perguntássemos algo diretamente, ele apontava para a orelha e sugeria que não ouvira. No entanto se qualquer um de nós dissesse algo muito inadequado, lá estavam os olhos secos do Reinaldo encarando o dono da frase com uma censura no olhar. Mas mesmo assim, era um companheiro. Acho que o trabalho dele interferiu mal para ele perante a natureza.
-Que afirmação estranha. Como pode o trabalho de um homem interferir mal para si perante a natureza ?
-Pensei que você soubesse aqui na cidade todo mundo sabe, Reinaldo era guarda florestal nas terras das reservas do Alto Uruguai, seu trabalho era de guardar a floresta com a força da lei.
-Parece-me um bonito trabalho. Cuidar de uma floresta para que seja preservada, deve ser algo gratificante.
Para a floresta talvez, para o Reinaldo acho que não. Foi muito trágico. Ele só conseguiu proteger com matança.
Minha curiosidade se aguçou, a farmácia estava vazia e a conversa tinha tomado um rumo muito curioso. O boticário era meu conhecido há muito tempo, sua mão ficou aquecida pela água quente quando encheu a cuia do chimarrão, quem sabe aquele calor amigo soltasse sua língua numa história de tantos anos atrás? Resolvi explorar o momento, até porque o próximo amargo seria meu.
-Explica mais. Que matança é essa?
O boticário trocou de perna, passou a cuia para mim e escolhendo as palavras disse:
-Era uma época difícil aquela dos anos vinte quando o jovem Reinaldo corria este planalto cumprindo o seu dever. O povo ainda não estava bem acostumado a obedecer a leis do presidente Getúlio que proibia derrubar uma árvore da reserva e dizer para alguém que ele não podia derrubar um pinheiro para fazer lenha ou para construir uma casa, era quase como se estivessem ofendendo o sujeito. Cabia ao Reinaldo cuidar para que ninguém desrespeitasse a lei na reserva. Uma noite, estávamos num grupo de amigos reunidos e perguntamos para o Reinaldo:
-Reinaldo, se tu és surdo, como é que tu consegues achar alguém cortando uma árvore no meio deste matão sem fim?
Reinaldo que quase nunca falava, naquele dia resolveu soltar a língua, talvez porque o peso dos fatos pudesse aliviá-lo contando. Então, narrou para nós esta história aterradora.
Eu ouço o machado cravando no tronco. Quando desço do cavalo, encosto o ouvido numa araucária, sinto a batida do corte. Sei direitinho de onde está vindo. Cautelosamente sigo a direção entre a árvore que me informa pelo som a árvore que vai morrer pela mão que empunha o machado.
O grupo ficou quieto, pois já ouvira na cidade comentários do desfecho. Mas Reinaldo botando as coisas às claras continuou.
-Amarro meu crioulo pelas rédeas numa moita, pego o ferro e me esgueiro bem de vagarzinho até uns cem metros de distância onde estão os lenhadores, eles estão quase sempre em dois. Sempre espero uns cinco minutos, pode ser que eles desistam de matar a árvore. Começo a atirar. No primeiro sempre atiro na testa, acho que é um lugar mais difícil de acertar, é mais uma chance que estou dando a ele. No segundo miro no coração. Muita gente não morre com um tiro no coração. No terceiro se ele houver, nunca atiro. Deixo ele fugir. Reinaldo nos falou isso, sem flutuar o tom da voz. Sem remorsos. Sem paixão. Sem alma. Acho que foi o dia que ele mais falou perto de nós. Continuou:
- Depois, busco o cavalo, coloco os corpos em cima, amarro bem os pés e as mãos por debaixo da barriga do animal para os corpos não caírem e volto á pé puxando as rédeas, até a feitoria para entregar os corpos.
-Alguma vez alguém ficou só ferido? Perguntei.
-Não nunca.
Pelas vidraças, enxerguei o velho Reinaldo caminhando já longe, com os passos longos e calmos. Fiquei olhando em silêncio, tentando imaginar se hoje por debaixo daqueles cabelos brancos, existia algum remorso. Foi quando ouvi o boticário dizer.
-Este teu silêncio, é o silencio da incompreensão. Também o tenho comigo, e há muitos anos. Sabes? O Reinaldo é vegetariano, nunca comeu carne, nas suas invernadas pela reserva, cheia de animais que dariam um excelente ensopado ou um ótimo assado, o Reinaldo nunca atirou em nenhum animal. Comeu sempre frutas, sementes, raízes e arroz que levava nos alforjes.
Fiquei quieto pensando num guarda florestal andando a cavalo num dia de chuva a procura de um tronco onde iria encostar o seu ouvido para ouvir o corte de machado. Refiz-me desta imagem e falei:
-Obrigado pelo atendimento e pela história, cada um tem a sua, mas realmente esta que me contaste não é nada comum. Num gesto de despedida, entreguei a cuia do mate para o boticário.
-Passe bem, se precisar de outra coisa, já sabe o caminho, o mate e o coração estão sempre quentes para ti.
O sol estava prazeroso, com ele me aquecendo a costa, fui descendo a ladeira da avenida no caminho de casa dos meus parentes onde eu estava passando alguns dias em vista.
Á noite fui dormir cedo, depois de haver jantado um frango ao molho de madeira regado por um excelente vinho colonial.
Durante a noite, sonhei que estava em um lugar onde não conseguíamos respirar. Eu e todas as pessoas íamos morrer se não conseguíssemos subir uma grande serra que continha no seu cume uma floresta de arvores. Porem, todos tínhamos que passar por um desfiladeiro estreito, um por um. Neste desfiladeiro, um cavalheiro de longos cabelos brancos, armado com uma lança comprida, montado num cavalo negro, guardava a passagem. Olhava para os andantes e com um raio de fogo pulverizava o infeliz. Outros ele olhava e sem nada dizer deixava seguir o seu rumo serra á cima. Quando chegou a minha vez de enfrentar o olhar do guardião, eu já estava suando na cama. Acordei-me com o desconforto do pesadelo e fui tomar um ar na varanda da casa.
O céu estava cheio de estrelas, pensei no arvoredo que ainda estavam lá na reserva. Quantas árvores hoje cresceram e devem ser enormes porque alguém morreu. Que troca fatídica. Vida humana por vida vegetal. Quem seria o maior culpado pela troca? Quem era mais responsável? A Feitoria ou o Reinaldo?
O boticário tinha dito: que o trabalho do Reinaldo interferiu mal para ele perante a natureza. Seria isso uma condenação moral do amigo de infância? Ou seria a descrição de um efeito colateral da ação do trabalho do velho guarda?
Duas horas depois abraçado no travesseiro me embrenhei na noite escura do sono sem sonhos.
O dia que se seguiu, era uma quarta feira. Começou com uma bela manhã ensolarada. Era um desses dias que a gente agradece estar vivo e morar neste planeta. Como a estação era a primavera, o sol orquestrava as cores nas flores dos jardins no quintal das casas, multiplicando suas cores e degrades.
Brilho? Isso não faltava nem no sótão das casas mais antigas nas colônias, onde os raios solares vazavam as frestas dos telhados e choviam luz para dentro. Sai de casa lépido e fui para o meu encontro.
A avenida principal da cidade desemboca na prefeitura, junto com outras ruas. Aquele lugar alem de ser o centro de poder da cidade, é também um centro de rota. Ocorreu-me, que um dia nos fundos daquela prefeitura, existira um departamento chamado Feitoria onde muitos destinos findaram.
Comecei a subir os degraus da dentadura de pedra pelo lado direito. Lá em cima sobre a língua azulejada estava o escrivão da secretaria de obras que se chamava Análio e que me esperava. Eu queria que a prefeitura me indicasse um agrimensor para me ajudar a medir uns campos e dias atrás solicitara ao Análio esta ajuda. Daí este encontro.
Pelo lado esquerdo percebi que subia outra pessoa que acenava alegre para o Análio.
-Dois amigos pontuais. Comentou o Análio.
Foi então que percebi que a outra pessoa, não podia ser outra, senão o agrimensor. E era.
O Análio nos convidou a entrar, mas o agrimensor que se chamava Baltazar argumentou.
-Este sol é um presente que não deve sofrer desfeita, quem sabe conversamos um pouco aqui fora?
A proposta foi bem aceita e começamos a nos entender. O assunto era preço, horas de trabalho, deslocamento, diária etc...
De repente o agrimensor ficou calado, com os seus olhos brilhantes no rosto onde se desenhou o arco triste do poente em suas feições.
-Eu moro aqui em Erechim, por causa daquele homem. E com um jogo de queixo indicou um velho magro de rosto quadrado e passos largos e lentos que passava lá em baixo na calçada. Bem naquela hora, bem naquele lugar, bem na nossa frente.
-O Reinaldo? Perguntei.
-Tu o conheces?
-Não. Mas acho que como todo mundo aqui, conheço a histórias que contam dele. Teu pai era lenhador?
-Não. Meu pai era agricultor. Nossa família é do município de Paim Filho, que fica á uns 70 Km daqui de Erechim é uma cidade pequena, ás margens do rio Inhandava, meu pai era um pequeno agricultor naquela região.
Aconteceu que um dia, estava ele na barranca do rio quando viu um cachorro atravessando a nado as águas calmas do rio. Num ato impensado, meu pai para experimentar a espingarda que ganhara de presente de um irmão, arma velha sem mira, restos da revolução de 23 que andou por lá, atirou no cachorro. Foi um tiro com a bala guiada pela mão do destino. De uma grande distância, quase impossível de se acertar a bala foi se alojar bem no crânio do peludinho que morreu sem dar um ganido. Porem, o tiro foi visto por algumas pessoas que estavam pertos na hora. Foi um visinho do meu pai, que picando um fumo na mão se aproximou e disse sem levantar os olhos.
-Compadre, foi um tiro raro, de gente boa no gatilho, mas o alvo não podia ser pior. Aquele cusco era o cachorro guia do Velho Reinaldo. E então, levantou a cabeça e disse muitas outras coisas com o olhar. Meu pai entendeu tudo e nada falou. Daquele instante em diante, começava a sua vida a mudar mais que as águas daquele rio.
O agrimensor ficou quieto, olhando para a ponta dos sapatos, talvez se lembrando de coisas vividas no passado.
-Agora termina a história disse o Análio que mantivera total silencio até ali.
-Pois é. Passou-se uma semana, numa noite de muita chuva, estávamos reunidos todos na cozinha da nossa casa, quando bateram na porta. Fui eu quem se levantou para atender e abrir a porta. Do lado de fora, dentro de uma capa preta e sob um chapéu que pingava água, ouvi uma voz que me disse.
-Chama o teu pai.
Não foi preciso chamar. Meu pai estava ali olhando para aquele homem que eu não conhecia e se desculpando de todas as formas. Prometeu indenizar, prometeu dinheiro, disse que se arrependera demais do ocorrido, que não era intenção dele acertar o cachorro, que tinha sido um momento de burrice da sua vida. Por fim parou de falar e ficou olhando para aquele homem alto e estranho, como que esperando um desfecho pior.
O homem abriu a capa e apareceu o cabo de um revolver e um facão. Colocou uma mão na coronha e a outra no cabo do três listas. Meu pai deu um passo para traz e me empurrou para o lado da porta. Estufou o peito e esperou pelo castigo.
Alguns segundos passaram, minha família inteira entendia que a vida e a morte estavam ali na porta decidindo algo. Se um tiro tivesse acertado o meu pai naquele momento, teria sido um tiro disparado á uma semana atrás e que finalmente vinha encontrar o alvo.
Não houve o tiro. Ouvi os passos longos que se afastavam depois de proferir estas palavras:
-Segunda feira nesta mesma hora se tu ainda morares nesta cidade, tu vais morrer como o cão.
Em vinte e quatro horas, meu pai vendeu a casa, arrumou a mudança e partimos de carroça de Paim Filho para Erechim, desde então, vivemos aqui.
Ficamos os três quietos olhando o velho magro e alto com passos largos e lentos se afastar até sumir coberto pelas copas das árvores que arborizavam toda a cidade nas calçadas, depois nos despedimos quase que em silencio e comecei junto com o agrimensor a descer a escadaria. Quando estávamos na metade ouvimos o Análio falar lá de cima:
-As reserva do Alto Uruguai é o único lugar neste Brasil onde a mata é forrada de araucárias, tem árvores lá de mais de duzentos anos. Durante muitos e muitos anos nunca tivemos um caso de invasão de terras naquela região. Dizem que é protegida por espíritos luminosos que vagam á noite na escuridão. Mas claro isso é só história de povo ignorante.
Para pasmo meu ouvi o Baltazar dizer essas palavras:
-São as pessoas normais que sempre nos desapontam, os loucos não nos assustam, pois são previsíveis.
Terminamos de descer os últimos degraus e após a despedida tomamos rumos diferentes, as direções tomadas por mim pelo Análio e pelo Baltazar eram separadas por ângulos iguais, nossos destinos separados tinham a forma de uma estrela que irradia sua luz por três pontas. Ali naquele entroncamento da vida, num pequeno momento do tempo foi possível perceber a cumplicidade entre o passado e o presente e que nunca estamos totalmente sozinhos, mesmo dentro de uma mata densa.
Antes de entrar em casa ainda pensei no esperto doutor comedor de mangas: Tudo depende do que escolhemos para nós. A hora mais importante é a da escolha, ali temos opções de errar ou acertar, o resto é o desfecho que sempre deixa como pagamento o sabor que o passado tem.
O Baltazar tinha razão o seu pai não soube escolher o alvo, optou pela manga errada.
Por coisas da vida, me mudei de Erechim para outra cidade e nunca mais voltei lá, sei que a cidade cresceu e que no seu norte nas reservas do Alto Uruguai o vento balança as copas das araucárias gigantes.

FIM

quinta-feira, 28 de julho de 2011

FLUTUAÇÃO

Quando nascemos? Quando começamos a perceber que existe um mundo fora de nós? Por certo isso acontece bem antes do parto mesmo antes de conhecermos a gravidade terrestre que só nos é apresentada quando a bolsa materna rompe e paramos de flutuar. Porem, aquela sensação de não possuir peso nos acompanha por toda a vida como algo maravilhoso pelo qual passamos então a vida toda procurando recriar.
A lembrança remota da flutuação, guardada bem no fundo da nossa mente, faz com que todos os nossos pensamentos fiquem impregnados por esta doce sensação de não possuir peso. Por isso, existem pensamentos que parecem nos tirar do chão, que nos permitem caminhar como se os pés não estivessem tocando o solo. Outros pensamentos nos aterram e podem nos imobilizar, são capazes de provocar cegueira, mudez, riso ou choro. Acho que os dois pensamentos têm como referencial a flutuação que conhecemos durante a nossa gestação.
É certo que nenhum pensamento consegue nos fazer levitar. Jamais pensamento algum do homem conseguiu contrariar qualquer lei da física, mas por certo a fantasia da flutuação foi a inspiração de muitas descobertas ocorridas entre as curvas da estrada do conhecimento que nos trouxe até aqui.
Nunca ninguém flutuou no ar. Não que não tenha sido tentado por magos, druidas, santos, querubins e mágicos enganadores. Muitos tentaram convencer que eram capazes de levitar, mas o resultado é sempre o mesmo, ilusionismo.
Somos assim, portadores de uma mensagem invisível criada durante a nossa gestação na barriga das mães, que nos impele a querer contrariar a gravidade com o pensamento. Sem duvida nosso habitat contribui em muito com estes pensamentos rebeldes contra a gravidade, visto que a natureza parecendo querer nos atiçar faz com que coisas flutuem bem na frente dos nossos olhos e ao percebermos, nos excitamos com o desejo de imitá-la.
A compulsão humana do desejo de flutuar, cria interpretações para o fenômeno extremamente adequadas ao seu desejo. Assim, muita definição natural tem a falsa aparência do supranatural. Olhem como definimos flutuação cientificamente:
Flutuação é a condição em que se encontra um corpo dentro de um líquido quando este corpo tem a sua densidade igual a do líquido. Flutuação é também a condição que pode se encontrar uma bateria elétrica carregada quando esta se encontra ligada á uma fonte de energia de mesmo tensão. Quase mesma coisa e nas duas vezes o fenômeno nos instiga a querer realizar o desejo oculto de flutuarmos. Tambem as nuvens no céu nos arrebata.
O inglês Isaac Newton flutuou seus pensamentos magistralmente. No ano de 1.687 Newton publicou um livro com a interpretação de gravidade. Uma escorregadela foi a sua frase: - Matéria atrai matéria. Mas fora isso, o magnífico templo intelectual construído por Newton, tinha como alicerce a gravidade, grande algoz da nossa flutuação.
Passaram-se mais de trezentos anos e a população do planeta de Newton ultrapassou ao incrível número de seis bilhões de pessoas. Quantas destas pessoas compreendem bem o conceito de gravidade? Muito poucos, ainda mais com as lapidadas que foram dadas no conceito.
Newton navegou num mar desconhecido, onde ele não tinha se quer estrelas para se guiar. Tinha a liberdade de construir sua obra com as ferramentas que escolhesse e escolheu a flutuação.
Seus pensamentos tiravam o fôlego, tinham sobre todos os efeito de quem perdeu o chão sob os pés, era desconcertante.
Os homens de ciência da época torceram o nariz e acharam aquela construção de pensamento inverossímil e não aprovaram. Não parecia uma verdade sólida e bem plantada.
Um bom homem de ciência nunca deixa seu pés ficarem presos no chão ou soltos no ar, então, criou uma estrutura de pensamento matemático que chamou cálculo diferencial e integral e provou de novo. Provou de um jeito onde a exatidão da dedução superava a lógica de uma maneira irredutível convincente e terrena. Não sobrou alternativa e começou então o esforço pela compreensão dos novos andares no templo dos números.
A ferramenta racional criada por Newton tinha-se revelado polivalente e servia como uma luva em todas as outras correntes do pensamento científico do homem. Aquele trecho da estrada estava acabado e para sempre seria assim. Por ali haveria de seguir a humanidade por muito tempo. O primeiro método faleceu.
Alguém um dia em algum lugar falou assim: - E aquele outro jeito? Aquele negócio de flutuação? Pensadores, intelectuais, amantes da física começaram a cavoucar no método da flutuação de Newton. Foi quando o pasmo se fez. Era muito mais simples mais adequado para desenvolver o pensamento e encontrar a mesma solução, só que já era tarde. Mas no que consistia o método de flutuação de Newton? Ora, é a maneira de chegar à conclusão usando o mínimo de evidências possíveis. Pulando etapas onde a demonstração é muito complicada ou impossível, adotando ali uma resposta inevitavelmente correta. É um método onde o pensamento rejeita os paradigmas de um sistema bipolar. É um pensamento centrado e que não se subordina ao racionalismo.
Vou dar um exemplo de pensamento flutuante com um interrogatório onde uns grupos de pessoas buscassem um consenso de culpa para um acusado chamado Sebastião.
Alguem foi assassinada num apartamento ás 22h de um determinado dia. Neste mesmo dia ás 22,10h viram o Sebastião sair correndo pela porta do edifício. Este fato basta para condenar o Sebastião? E se o Sebastião fosse um bombeiro e estivesse atendendo a um chamado?
A pessoa morta tinha sido esfaqueada e o Sebastião estava com uma faca na mão. Basta para condenar o Sebastião? E se o Sebastião tivesse achado a faca no corredor?
Alguém no corredor viu o Sebastião saindo de dentro do apartamento onde estava a vítima com a faca na mão. Basta para culpar o Sebastião? E se tivesse outra pessoa dentro do apartamento onde houve o homicídio?
Alguém viu o Sebastião esfaqueando a vítima. Basta para condenar o Sebastião? E se o Sebastião tivesse sido intencionalmente drogado e induzido a cometer o crime?
Se o Sebastião confessasse o crime? Basta para condenar o Sebastião? E se o Sebastião fosse demente?
Há um momento do interrogatório que se adota a culpa ou a inocência do Sebastião sem margem de erro. O método que se deve usar no interrogatório é o da flutuação.
Flutuação é a quantidade de evidências mínimas necessária para deduzir o certo. Para uns é mais e para outros é menos. Flutua.
Somos acostumados a usar o método da flutuação na maioria dos nossos problemas. Em telecomunicação então, nem se fala.
A medicina do leigo é flutuante. A física do leigo é flutuante. A justiça do leigo é flutuante. O amor é flutuante. As religiões com sua fé são flutuantes.
Dedução, demonstração, reducionismo, prova, igualdade, perfeição, são características dispensável nas telecomunicações para um técnico intuitivo. Elas existem e é necessário para quem apreciar desenvolve-las, mas para muitos que manuseiam as telecomunicações, bastam as flutuações.
Os artistas foram os mais bem sucedidos no uso das flutuações. O avião foi desenhado por Da Vince séculos antes da possibilidade tecnológica de construí-lo. O submarino foi romanceado por Júlio Verne em livro dezenas de anos antes de haver tecnologia capaz de construir. Ainda não fazemos tele transporte de pessoas, mas fazemos de partículas.
Artistas, mágicos e cientistas, são três entes bem acoplados. Um sonha o outro desafia o outro prova. Nós? Nós flutuamos.
Flutuamos quando a música nos arrebata os ouvidos, flutuamos quando os bailarinos na ponta dos pés nos arrebatam os olhos, flutuamos num jardim quando o odor das flores nos arrebata o olfato, flutuamos no primeiro beijo de amor quando o toque nos arrebata na boca da amada. Talvez a maior prova que o homem poça vir a flutuar aconteça no momento exato da sua concepção, quando o amor ejacula o desejo arrebatador mais bonito da mente humana, o de criar outra vida flutuante, pois naquele momento perpetuamos e o perpétuo não pode estar preso no solo.
Há um instante muito pequeno na vida de todos nós quando o quase impossível acontece, um único e singular momento em que somos criatura e criador, sem dúvidas os pensamentos que se ejetam da nossa mente durante a fecundação da vida, superam a gravidade, pois neste momento tudo flutua. Para mim esta é a resposta, este é o momento exato do nascimento.


FIM

sexta-feira, 22 de julho de 2011

ANTENA METAFISICA

O que é uma antena de rádio freqüência? Antena é um artefato por onde entra ou sai informação humana codificada astutamente. Numa antena de RF passam todas as informações do rádio á ela ligada e atrás deste rádio sempre existe alguém. Em última análise, uma antena de RF está sempre interligando alguém com alguém.
Se daqui a milhões de anos, os paleontólogos do futuro quiserem saber como os homens da época de hoje se comunicavam, poderiam desenterrar de um sítio arqueológico uma antena. Conhecendo a antena, poderiam dizer tudo sobre os rádios usados no passado e como os seus ancestrais trocavam informação á distância. Poderiam também perceber a nossa astucia em transformar nossa vontade em códigos transportáveis para muito longe, ou seja, eles iriam decifrar nossas mentes, pois um equipamento de telecomunicações é um artefato que foi construído com tais cuidados que nele está registrado o modo com que nesses dias de hoje, nos relacionamos com o espaço e como delicadamente manipulamos a força eletromagnéticas.
Ouso dizer que sem esse braguete voltaríamos a usar espadas na cintura e eleger reis tribais.
Mas se a antena não for de rádio freqüência?
Uma lesma tem duas antenas, uma de cada lado da cabeça e funcionam na configuração de diversity. Outros animais são também muito interessantes.
A cobra, o elefante e os pombos têm os ouvidos que funcionam como antenas de recepção sonora, mas também tem outra antena diferente em cada um deles. A cobra tem a língua que capta odores do ar que ela transforma em informação, executa uma comunicação química. O elefante com o seu grande peso sobre as patas no solo capta vibrações mecânicas do solo e transforma em informações para encontrar água. Os pombos conseguem captar os campos magnéticos da terra e transformam em informações para fazerem grandes viagens orientadas por esta antena maravilhosa. Nesse nosso mundo tudo necessita se comunicar, quem não se comunica, fica sozinho.
Darwin nos ensinou que a vida desenvolveu-se sobre o domínio da seleção natural. O conceito darwiniano foi aplicado em tudo o que existe sobre o nosso planeta. Não só para á vida humana. A antena foi fruto dessa cadeia evolutiva também. Muito lógico é o fato de a antena metálica ter sido inventada muito antes que os artefatos eletrônicos. O ovo nasceu antes que a galinha e as antenas antes que a vida na terra. Duvidam?
Júpiter é a antena que atrai a maioria esmagadora dos meteoros que entram no nosso sistema solar protegendo a terra contra colisões destrutivas. O tamanho de Júpiter e sua gravidade? Ora isso é só outra maneira de conceituar antena. A informação que Júpiter processa, é meta-física.
Meta-física é todo o conhecimento que exige explicações que vão alem do conhecimento da física. Assim por exemplo: Dizer o que existe fora do nosso universo, seria fazer uma cogitação metafísica. Enquanto que a Física azul são todos os fenômenos físicos que acontecem aqui neste planeta cuja cor predominante lá de cima, é o azul.
Metafísica é diferente de realidade fantástica ou de ficção científica. Façamos uma analogia com o cinema.
Realidade fantástica seria um filme onde uma múmia revivesse. Ficção científica seria um filme onde uma nave fizesse uma viagem para outro planeta habitado e fora do nosso sistema solar. É possível que esta viagem venha a acontecer embora o homem ainda não saiba fazer tal viagem.
Meta-físico é um filme impossível de fazer.
Antena fantástica seriam aquelas capas de ouvir espíritos e almas penadas ou vozes do passado.
Antena de ficção científica seria aquela capaz de ouvir vozes de outros planetas.
Antena Metafísica é a minha preferida, esta seria capaz de ouvir o que nunca foi dito.
Sou um fabricante de antenas e num dia ao pular da cama de manhã, não sei por que, tinha a determinação de construir uma antena metafísica. Com lápis de desenho e papel manteiga, planejei três experiências para estudar o fenômeno.
A primeira experiência aconteceu em casa. Moro numa chácara com uma casa pequena no meio de muito vazio. Neste lugar eu tenho uma cadela chamada Lola. A Lola sempre latiu quando um estranho se aproximava da minha casa, e quando alguém conhecido da Lola se aproximava, ela abana o rabo faceira.
Comecei a pensar: Por que antena entrava a informação na Lola? Dizem que todos os sacrifícios são válidos para o desenvolvimento da ciência. Parti para a pesquisa da Antena Metafísica com a minha cobaia Lola.
Construí um caixão hermético de dois metros por dois metros e fiz deste caixão a moradia da Lola. Dentro do caixão coloquei luz, uma câmara por onde eu pudesse ver a Lola e um sistema de oxigenação. Depois de muito tempo de uso da sua moradia, a Lola não queria estar em outro lugar. No caixão havia água fresca e muita comida.
Foi então que numa certa noite, enquanto a Lola dormia, delicadamente fechei bem o caixão e transportei para a piscina com a Lola dentro ainda dormindo. Não foi nada fácil, mas eu havia me preparado mecanicamente para esse translado.
Minha piscina é muito grande, o caixão afundou sem a Lola perceber que estava sendo transportada. Todos sabem que se o referencial não muda, não existe movimento, a Lola encaixotada repousou no fundo de uma grande coluna de água.
Eu tinha criado uma barreira isolante para o odor. A Lola não podia sentir o cheiro de nada que estivesse fora da piscina. Quando minha canina acordou, eu podia vê-la no monitor circulando lá dentro, a Lola não via nem ouvia nada de fora da caixa. Ai a experiência começou.
Primeiro fiz meus filhos se aproximarem da piscina sem fazer nenhum barulho. A Lola abanava o rabo na telinha. Depois eu pedi que pessoas estranhas se aproximassem da piscina, sempre em silêncio. A Lola latia enraivecida.
Minha conclusão foi óbvia. Animais possuem Antena Metafísica. Vou construir uma para mim.
A segunda experiência, eu achei pronta no Google. A pesquisa fora feita por cientistas de uma universidade inglesa. Depois de muitos ensaios os estudiosos concluíram que macacos no Congo quando eram ensinados a usar ferramentas para pegar a comida, faziam com que os macacos na Indonésia aprendessem também. Ainda que os macacos da Indonésia, nunca houvessem tido contato com seus semelhantes no Congo. Como a informação lhes era transmitida? A minha resposta é: Antena Metafísica.
Faltava só uma experiência para acabar com o vulto da coincidência.
A terceira experiência, eu fiz com os meus peixes do aquário. Durante muito tempo, só servi comida ascendendo antes uma luz amarela no canto do aquário. Passado algum tempo, quando a luz amarela era ascendida naquele canto, os peixes nadavam para lá, mesmo antes de a comida ser servida. Até ai não espanta, espanta o fato de que num segundo aquário com peixes da mesma espécie, mas que nunca tiveram contato com os peixes do primeiro aquário, houvesse um comportamento igual aos peixes do primeiro aquário quando a luz foi acendida pela primeira vez no canto do aquário deles. Quando todos nadaram para a luz amarela, a minha conclusão foi óbvia de novo, os peixes possuem uma Antena Metafísica. Vou construir uma para mim.
Fiquei a pensar, e nós que somos apenas um elo na cadeia da vida? Não possuiremos também Antena Metafísica?
Pode a seleção natural usar de meios muito diferentes para as espécies tão pouco diferentes nos seus DNA? Terá a nossa natureza nos municiados também com essa poderosa antena? Comecei a questionar.
Como explicar a sensação? Como podemos achar que alguma coisa está certa quando tudo indica que está errada? Ou ao contrário? A seleção natural não impossibilitaria essa capacidade?
E a hereditariedade? Ainda não está bem explicada pela ciência, e se o protocolo não está todo na cadeia do DNA? E se precisamos enquanto estamos em gestação, buscar outras informações em dados que estão fora do útero materno?
Teríamos que ter um sistema de recepção, ou seja, uma antena. Esta antena teria que receber um sinal. Todo o sinal é originado de um campo. Que campo seria esse que esta antena coleta e transforma em informação? Alguns cientistas chamam de Campo mórfico. Teríamos nós mais uma antena que a física ainda não percebeu? Eu acredito que sim, não podemos estar desconectados do resto do universo, nossos cinco sentidos são muito poucos para esta conexão. Coisas maravilhosas ainda vão ser reveladas para nós e entre essas maravilhas por certo estará a minha Antena Metafísica. Espero que não desvirtuem, nem que façam um filme onde uma Antena Metafísica salvou o mundo. Antes que me perguntem, minha Antena Metafísica ainda não está pronta, esbarrei no problema do conector. Vou superar esse problema e quando eu estiver irradiando, vou entrar sorrateiramente no subconsciente de todos e sussurrar:
-Nada no mundo é mais espetacular que a comunicação invisível, que não requer tato, olhar, paladar, audição ou fala. O espetacular está alem dos sentidos, está na imaginação.

FIM

quarta-feira, 20 de julho de 2011

QUANDO EU TOCO PIANO

Ser viciado em piano é pior que ser apaixonado por esporte, festa ou jogo. O piano domina as mãos a cabeça a mente e a alma.
O futebol, por exemplo, tem o problema do campo, pois não existem muitos e dá muito trabalho o antes e o depois do jogo. O piano tem problema com os vizinhos. Nem todo mudo gosta de ouvir, por isso, os poucos momentos que me sobram para tocar, são os horários que eu apelidei de suave intervalo. Com o tempo eu percebi que havia momentos em que eu não fazia superposição sonora nos ouvidos dos meus vizinhos, era como se eles estivessem no vácuo onde o som não penetra ou era como a nota musical que só fica no compasso cercada de pausas ou ela sozinha preenche todo o intervalo. Meu suave intervalo era a pausa.
Durante a pausa do horário surdo para eles eu toco piano. Não sou muito versátil, gosto de tocar aqueles clássicos onde as notas têm comprimentos de ondas diferentes. São as assimétricas, coisas de anteneiro metido a pianista.
Quando eu toco piano, toco virado para a janela como se esta fosse um portal capaz de ligar dois mundos. Nunca ninguém no meu mundo me viu tocar piano de olhos abertos.
Quando eu toco piano, posso imaginar tudo. Primeiro que eu não estou ali, que o piano é só o meu aparelho de tele transporte. Segundo que a música é só o protocolo comum de todos os seres humanos e que faz seus comportamentos modificar-se. Terceiro que eu sou até capaz de tocar no impossível.
Tem músicas que me trazem a sensação de estar velejando na Lagoa dos Patos, tem músicas que me levam a escorregar nas areias dos lençóis maranhenses. Tem músicas que me levam a caminhar sobre a relva de campos macios cercado por uma vegetação cheirosa da mata atlântica, lá é para onde eu mais gosto de ir, lá tem as árvores frondosas que inspiram mistério e magia e contos de fadas, foi de dentro de uma árvore que o Deus da música nasceu.
Um piano basicamente compõe-se de teclado e caixa de som. Na caixa de som, estão os 88 martelos e as 88 cordas. No meu piano a caixa de som é verde.
Quando eu toco piano eu sou eu, mas ás vezes eu sou o teclado, outras vezes, eu sou a caixa verde e outras, os três são um só.
Eu sou o teclado quando meus dedos, ao bolinarem o marfim, me fazem confundir se é eu ou o teclado que está tocando. Eu sou a caixa verde quando me iludo que o som nasce das minhas mãos.
Eu o teclado e a caixa verde em certos momentos entraramos em um estado tamanho de acoplamento que o som vasa pela natureza. Quanto mais bem nós nos acoplamos, melhor o som voa no ar em formas de ondas capazes de envolver mesmo quem estiver mais desatento. Todos que me ouvem estão na minha LAN, que é o meu salão de devaneios onde eu posso se quiser até voar.
Quando eu toco piano, algo que não é físico passa de mim para o teclado. O teclado que é bem mandado obedece e transporta para a caixa verde a minha vontade. A caixa verde faz o milagre, de transformar a minha vontade em música. Esta se propaga no ar. Balzac disse que há três coisas que não deixam vestígios. Um peixe na água, um pássaro no céu e um homem numa mulher. Eu acrescento na quarta: A minha música no meu piano.
Orpheu é um ancião que mora do outro lado da rua, bem em frente á minha casa. Orpheu é cego, nasceu cego, não tem o conceito de cores, mas sabe tudo sobre som. Dizem que pelo som dos passos de uma pessoa caminhando na calçada, ele sabe desta pessoa a nacionalidade e religião se está feliz ou triste, se é rica ou pobre, se é boa ou má. Eu e ele nunca conversamos, na verdade ele me irrita e acho que ele sente o mesmo por mim.
Quando eu toco piano, Orpheu pega uma cadeira, senta sob a sombra de uma árvore frondosa de caule grosso do seu quintal e presta toda a atenção na minha música. Uma leve desafinação e lá está aquele velho irritante batendo com a bengala na cerca de ferro. Para aquele tirano da freqüência, não interessa se fui eu o teclado ou a caixa verde. Para ele o som que toca os seus ouvidos não pode ter ruído, tem que ser puro, no tempo certo, na dota afinada, na amplitude perfeita. Isso me irrita. O Orpheu não tolera nenhuma imperfeição sonora.
Fiz um plano para matar o Orpheu. Eu haveria de me vingar daquele carrasco. Ele haveria de ser o corpo delito de um crime sem solução planejado por mim.
Eu e ele sabíamos que se duas notas numa música tem freqüências ligeiramente diferentes elas estão desafinadas, então surge um batimento como se fosse um som áspero, uma dissonância que resulta da interferência destrutiva das duas ondas quando estas ficam em fase ou em oposição de fase. Ai estava a arma mortal do crime. Eu iria matá-lo com a minha música.
Nos dias de Setembro o horário das seis horas, trás consigo uma paz adocicada no final da tarde, pela temperatura morna, pelo vento úmido, pelo farfalhar das folhas nas árvores e por uma vontade em todos de que tudo fique em suave silêncio. Esta seria a cena do crime.
A minha rua é sem saída, não tem tráfego. O sinal dominante sou eu quem gera quando toco piano. Esta seria a arma do crime.
O palco estava perfeito. Eu, a música e o velho. A munição que eu usaria seria a interferência e haveria de matar um dos três. Não poderia ser eu a morrer, porque eu estava protegido pelo plano. Não poderia ser a música a morrer porque ela era a arma do crime. Só poderia ser o Orpheu. Ele não iria agüentar aquela apoteose.
Com acordes dissonantes, comecei a tocar Desafinado de Vinícius e João Mendonça no ritmo de bossa nova. João Gilberto foi genial quando criou uma maneira de fazer música usando os tons dissonantes que é uma batida diferente no meio do som. O que é isso? Ora, superposição construtiva é claro.
Orpheu se levantou num pulo da cadeira, com a bengala erguida ameaçando a cerca de ferro.
Se você disser que eu desafino amor. A palavra desafino na música, tem um acorde dissonante no i que é uma harmônica da nota natural. A bengala erguida tremia na mão do velho cego. Mas não descia.
Saiba que isso em mim provoca imensa dor. De novo eu agredia e o cego tremia. A palavra imensa na música é um desaforo musical, uma interferência normal.
Toquei a música até o fim – Que no peito dos desafinados também bate um coração. Então parei.
Orpfeu que parecia uma estátua olímpica foi murchando lentamente, até que virou-se e com passos trêmulos entrou para dentro de casa. Não voltou mais.
Eu ainda tocava piano. Mas o tempo foi rolando. Passou setembro, outubro, novembro e chegou dezembro. Do outro lado da rua ninguém mais sentava debaixo da grande árvore. Só o meu olhar ocupava aquele lugar. Parecia que o meu plano havia funcionado.
No dia trinta e um de dezembro, um pouquinho antes da meia noite, ouvi o som de um violão tocando “”chega de saudades””. Logo um violão, nenhum outro instrumento harmoniza melhor com o piano quando se toca bossa nova.
Sabem quem era? Era o defunto.
Vai minha tristeza
E diz a ela que sem ela não pode ser,
Diz-lhe, numa prece
Que ela regresse porque eu não posso mais sofrer.
Chega de saudade
a realidade, É que sem ela não há paz
não há beleza
É só tristeza e a melancolia.
Que não sai de mim, não sai de mim, não sai
Agora, quando eu toco piano um violão do outro lado da rua me acompanha. Fazendo superposições e marcando o tempo. Ás vezes em faze ás vezes atrasado, mas sempre em harmonia. Brincamos de dobrar e dividir a freqüência com os sustenidos e as oitavas. Ruído? Ruído é que nem limão. Com açúcar e cachaça fica ótimo. Até fora do suave intervalo estou tocando, claro, fiz parceria com um Deus da música.
Repito para vocês, ninguém no mundo vai me ver ou me viu tocar piano de olhos abertos.


FIM

segunda-feira, 18 de julho de 2011

O MAL DAS TREVAS

Normalmente o leigo não sabe o que é um sinal de rádio freqüência, ou o que é onda eletromagnética, até mesmo, o porquê do sinal se propagar no ar. Sabem por quê? Porque isso é um fenômeno e fenômeno é aquilo que a gente aceita sem que ninguém questione, foram os gregos antigos que nos legaram esse conceito, esse jeito passivo de conviver com o inexplicável é inato em nós.
Existem fenômenos que observamos com facilidade, como o fenômeno da água evaporar ou virar sólida, esses tiramos de letra. Existem fenômenos que nos atingem sem conseguirmos mensurá-lo direito, como o fenômeno de um corpo caindo no ar, para esses adotamos respostas convenientes. Porem existem fenômenos que nos passam totalmente por despercebidos, normalmente associamos esses com milagres ou magia.
Não sei quem primeiro falou a palavra “phainómenon”, mas de lá para cá todos concordaram que queria dizer “a quilo que parece” daí para frente ficou fácil. Tudo resolvido, basta classificar como fenômeno e aceitarmos como normal o fato de algo maravilhoso acontecer. Nós anteneiros estamos cercados de fenômenos físicos, cercados de coisas que parece, uma delas é o sinal numa antena sendo arremessado no ar.
Muitas vezes ouço algum anteneiro dizendo para mim:
-Mesmo estando a mil metros da antena com visada direta não consigo receber nenhum sinal, o que pode ser isso? Seria a antena? O rádio eu tenho certeza que está bom, ele é novo. Os cabos funcionam bem quando os texto em em outra instalação e a antena também funciona bem noutro lugar, são só mil metros com visada direta e não funciona.
Fico então com o eco daquela observação de fenômeno nos meus pensamentos, o que seria possível responder? Diagnóstico á distancia é leviandade, não dizer nada é uma descortesia. Recosto-me na cadeira e meus pensamentos fazem cambalhotas.
Se uma antena A com todas as condições para receber o sinal de uma antena B não recebe, é uma situação igual a alguém dizer: “Eu não vou e não fico”. Pode isso? Isso não é fenômeno, isso é como sentir saudades de alguém que não se conheceu, isso é impossível.
No entanto não se deve duvidar que um fenômeno desconhecido esteja pautando aquela situação descrita. Quem sabe é possível, influenciado por alguém, mesmo que por um breve momento os fenômenos passem a se comportar fora do esperado?
Acredito que o milagre e a mágica são o fenômeno que ainda não foi compreendido, mas que um dia será, esses dois confunde a nossa cabeça de pessoas comuns.
Os crentes precisam do milagre para justificar a entidade divina. Santo que não faz milagres não tem fieis. Jesus durante uma festa de casamento fez o milagre de transformar água em vinho, hoje é fácil fazer isso. Certa feita, com apenas cinco pães e cinco peixes, Jesus alimentou uma multidão multiplicando os pães e os peixes, hoje não se faz isso, mas será que no futuro não se fará? A física moderna tem sua atenção mergulhada no intimo da matéria onde ela já observou que partículas podem surgir do nada, assim como os pães de Jesus. Mesmo quem não é católico e que por ventura consiga criar partículas num laboratório tem que admitir que Jesus ao fazer a multiplicação dos pães á dois mil anos atrás fez por merecer a fé dos seus fieis.
Aquele anteneiro comentado antes, para se igualar no feito com Jesus, teria que fazer um enlace entre a terra e um planeta da constelação de Andrômeda sem usar antenas. Vamos lá.
A linha do tempo onde estão às realizações intelectuais humanas não é uma sucessão de transformações de milagres em fenômenos? A física moderna, para se substanciar, encontrou um meio termo, algo intermediário entre fenômeno e milagre e chamou de “singularidade”.
Singularidade seria como o sinal que saiu daquela antena A e não chegou naquela antena B, é como um corpo pesado que é solto no espaço e não cai, é um imã de um só pólo, é um fenômeno que aparentemente não obedece às leis físicas, parecendo com os buracos negros no espaço. Ou então, o que aconteceu no túnel acelerador de partículas.
Este aparelho foi construído na Franca, é um tubo comprido onde fizeram vácuos dentro. De um lado emitiram aceleradamente uma sub-partículas atômica, do outro lado em sentido contrário emitiram também outra partícula igual.
Quando as duas partículas colidiram no centro do tubo, apareceram quatro partículas dentro do cano. De onde teria saído as outras duas? Multiplicação das partículas? Ora com uma tecnologia mais avançada, um dia também poderemos multiplicar os pães. Coisa de tempo.
Existem histórias fáceis que acontecem ou acontecerem na linha do tempo e que servem para entendermos as coisas difíceis, por isso vou contar uma que aconteceu com um antepassado épico.
O meu nobre medieval estava na sua cidade dentro do seu castelo á noite com os amigos, tomando um vinho na frente da lareira que iluminava o salão do castelo com as labaredas do fogo crepitante e alguns archotes nas paredes. A lenha úmida que gerava o fogo era de nós de pinho e produzia uma fumaça que enevoava o ambiente. La fora uma tempestade se armava e se aproximava com a aparência assustadora da violência.
O vento seco assobiava quando açoitava as torres do castelo correndo pelas pedras dos muros do outro lado do fosso. Um felino procurava abrigo enquanto o vento lambia seus pelos pretos de gato sinistro. O atrito provocado entre o vento e o pelo negro do bichano, carregava eletrostaticamente o felino como se este fosse um capacitor.
Presunçosamente meu ancestral gabava-se para os amigos das batalhas que a família havia travado e vencido, fazendo isso, apontava uma a uma das armaduras que em circulo decoravam o grande salão.
Uma dessas armaduras pertencera ao sanguinário Mal das Trevas. Este cavaleiro recebera este alcunha por ter o habito de atacar seus inimigos à noite. O Mal das Trevas quando atacava os condados visinhos, alem dos inimigos, matava crianças e velhos, não tinha nenhuma piedade. Dizem que quando foi capturado teve como castigo, nunca mais sair de dentro da armadura. Rebitaram as articulações do ferro e deixaram o Mal das trevas lá dentro até a morte. Alguns dizem que dentro da armadura que ali estava adornando o recinto, ainda esta os restos mortais do ancestral maldito. Dizia a criadagem do castelo que durante algumas madrugadas ouvia-se gemidos e sons de espadas se cruzando.
Este assunto estava no auge quando o gato preto pulou para dentro do salão e passou pela armadura do Mal das Trevas. Naquela época, para uma armadura ficar em pé, usava-se uma estaca fincada no chão para sustentá-la e desta forma, a armadura ficava eletricamente aterrada. O gato preto ao passar por ela descarregou a energia estática que estava armazenada nos seus pelos contra a armadura do Mal das Trevas.
Uma chispa elétrica pulou do gato preto para o Mal, um enorme miado encheu de susto os corações de todos dentro do salão. Todas as cabeças viraram para onde vinha o som e para acentuar o efeito, um raio caiu lá fora com um enorme trovão, bem naquele exato momento.
Um gato preto soltando fogo contra a armadura de ferro do Mal das Trevas criando uma coroa luminosa provocada pela fumaça que circundava a armadura era demais, não havia dúvidas. O Mal das Trevas estava sendo ressuscitado pelo demônio.
O ancestral medieval e seus amigos fazem o sinal da cruz, pois não havia duvidas que o Mal das Trevas estava vivo dentro da armadura querendo vingança. Ajoelharam-se e pediram a Deus por proteção através de um milagre. Foram atendidos na suplica. O vento forte desviou a tempestade para outro lugar distante, o gato preto sumiu por uma janela aberta e o Mal das Trevas não saiu da armadura.
No outro dia sob a luz do sol, todos comentam, foi um milagre que nos salvou, Deus nos atendeu. Se não fosse por um milagre o diabo teria ressuscitado o Mal das Trevas e nos arrastado para as profundezas do fogo do inferno.
Não acho que Deus não atende uma suplica só acho que em alguns casos podemos confundir milagre com fenômeno. Assim como podemos supor que se uma antena A com todas as condições de funcionamento não se comunica com uma antena B a culpa só pode ser do Mal das Trevas, jamais seria milagre, fenômeno ou singularidade.



FIM

quarta-feira, 13 de julho de 2011

MACACHEIRA

MACACHEIRA

A selva amazônica durante a noite é invisível, pelo menos para os olhos humanos. Nenhum raio de luz se reflete na sua muralha preta. É como um buraco negro que aprisiona todos os raios de luz. Naquela escuridão, somente a nossa imaginação penetra, e mesmo assim contra a nossa vontade.
Uma torre de ferro de sessenta metros fora erguida numa clareira aberta pelo machado dos amazonenses que eram funcionários de uma mineradora em Pitinga, município do estado do Amazonas. Eu estava lá para fazer um enlace de 52Km em 2,4GHz. A grande empresa, uma das maiores exploradoras de cassiterita do mundo, havia me contratado para fazer o enlace e alimentar uma LAN em quinze prédios distribuídos dentro do complexo da mineração.
No meio da clareira, havia uma guarita de onde todas as luzes brotavam. Em volta da nossa caminhonete, estava eu e mais cinco pessoas. Mantínhamos a cabeça erguida para o topo da torre onde um técnico estava procurando o desejado sinal de rádio freqüência.
O Macacheira fora o nosso guia até ali e quebrando o silêncio falou assim:
-Não consigo entende o que este moço ta fazendo lá em cima.
Expliquei para o nativo, com uma linguagem simples a idéia de modulação, irradiação, transmissão, recepção, e sinal com informação. Lembrei a ele do rádio e da antena que havíamos instalado em outra torre igual horas mais cedo, e que agora estávamos tentando encontrar o sinal do lado de cá com este outro equipamento. Parei de falar e não ouvi nenhum sinal de compreensão. O guia ficara mudo e imóvel, assim como uma onça antes do bote certeiro.
Macacheira era um homem que nunca havia se afastado mais que cinqüenta quilômetros do local onde nascera. Fora a civilização que chegara até ele quando descobriram aquelas riquezas minerais na sua região. Inesperadamente a vós do nativo encheu o silencio da mata quando disse.
-Minha muié e minha fia fais isso também, só que elas uisa as flô e o vento. Uma coloca na flô o recado e o vento leva o perfume da flô que ela escoieu até a outra que cheira e entende o recado muito longe. Assim como oces.
Macacheira havia falado com voz baixa, calma e despretensiosa, mas aquilo que ele dissera, entrara nos nossos ouvidos como se fossem estrondos de um canhão.
Tive vontade de dizer de imediato que não acreditava, mas me lembrei que o Macacheira era muito arredio e por certo eu perderia a chance de explorar mais aquele assunto. Então muito cuidadosamente perguntei:
-E como elas fazem para colocar o recado na flor?
-Sei não. É coisa de muié da mata. Elas caminham no meio das flô com as mãos abertas, como se tivessem fazendo um achego nas flô, vão subindo e descendo a mão do coração e mexendo a boca sem fala. Quando o vento passa por ali em direção da outra, já leva com ele o recado. Falam coisa delas: Trais fruta, oia a onça, vem pra casa, vai chove. Estas coisas.
Se uma folha caísse no chão naquele momento, com certeza ouviríamos, de tão grande que foi o silêncio. As palavras do Macacheira ribombavam na minha cabeça, eu quase podia ser ouvido sem falar. O Macacheira era uma pessoa que só de olhar para ele, percebia-se imediatamente ser alguém que não apreciava o riso e o humor. O que ele falará, mesmo parecendo absurdo, saíra de dentro dele com a força da verdade.
O assunto não se alongou muito, quando as perguntas começaram a nascer, Macacheira levantou o chapéu de palha da cabeça num sinal de quem diz com licença e simplesmente se retirou de perto, embrenhou-se na escuridão e a poucos metros de nós, ficou completamente invisível aos nossos olhos curiosos.
O sinal apareceu. Trabalhamos mais meia hora para fazer o acoplamento correto entre a antena e o rádio. O técnico desceu da torre. Entramos na caminhonete e retornamos para a pousada. No outro dia tínhamos que embarcar num barco e descer o Rio Negro. Nosso assunto dentro da caminhonete, vocês podem imaginar qual foi.
Já era meio dia e eu estava sentado na popa da chalana e ainda tinham na cabeça as frases do sertanejo. A minha muié e a minha fia fais isso também.
A natureza ali fazia o seu show. Deliciosamente eu olhava o encontro das águas do Rio Negro com o Rio Solimões. Os primeiros quilômetros eu usara para saciar a satisfação de estar ali onde o preto do Negro ladeava o marrom do Solimões, imitando com o verde das matas uma bandeira listrada de três cores. Nos quilômetros seguintes mergulhei na incompreensão.
Por que aquelas águas não se misturavam? Por que se mantinham teimosamente separadas? Seus animais do habitats submersos também se comportariam assim? Conseguiriam se camuflar nas águas escuras do Negro assim como fizera o Macacheira na escuridão da mata? Era a segunda vez que eu percebia naquela região uma escuridão tão impenetrável.
A chalana navegava e os meus pensamentos voavam. Nos últimos quilômetros, eu era pura dúvida. As águas dos rios e a história do Macacheira me deslocavam do centro do meu mundo racional.
Se elas colocassem recados no perfume das flores, então elas modulavam. Isso é impossível!
Os dois rios finalmente miscigenavam. A cor e o nome mudavam. Lentamente começávamos a navegar pelas águas poderosas do Rio Amazonas. O maior volume de água doce do mundo. Bebedouro de uma fauna gigantesca, berço de riquezas, mistérios e beleza. Artéria principal do maior pulmão verde do planeta. Símbolo do poder natural de uma ordem soberana.
Já havíamos navegado alguns quilômetros pelo Amazonas quando me ocorreu que o compreensível e o incompreensível, assim como o negro e o marrom eram elementos essências na existência de tudo e de todos. Por certo na grande selva amazônica existem segredos incompreensíveis para os homens, mas não para todos. Pode ser que a mulher e a filha do Macacheira, seja a demonstração desta verdade que nos é tão difícil aceitar e que realmente consigam colocar recados nos perfumes das flores. Como? Não sei. Quem sabe se em certa noite sem lua, o preto do Negro e da mata, tenham sido o motivo para aquela gente olhar para dentro de si e encontrar luz no único lugar possível naquela escuridão. Alguém me disse uma vez que o coração é o lugar onde mora o impossível.
Nunca mais vi o encontro das águas, também nunca mais vi o Macacheira nem conheci sua família. Mas sei que nos lagos dos nossos pensamentos, funde-se o que chamamos de sabedoria, onde pessoas diferentes, com falas diferentes, com segredos diferentes, e com diferentes soluções para os mesmos problemas fazem telecomunicação.
O Amazonas desemboca no mar, mas nós seres humanos, desembocamos uns nos outros e no fundo da mais profunda escuridão existe luz. O resto é assim como a internet, só luzinha piscando.


FIM