quinta-feira, 18 de agosto de 2011

O PRIMEIRO ACOPLAMENTO



Meu avô era pedreiro, e ele sempre dizia que bastavam três ferramentas. A pá, o martelo e a régua, resto era só para ajudar, com essas três ferramentas ele construiria uma cidade.
Meu pai que ouvira o meu avo lembrava-se do passado com carinho enquanto planejava seu futuro.
Meu pai foi bancário e ele sempre dizia que bastavam três ferramentas, a caneta, a máquina de escrever e a máquina de somar, com estas três ferramentas, dava para dirigir um banco.
Eu que ouvira meu pai e lembrava-me do passado com carinho enquanto planejava o meu futuro.
O tempo continuava ligeiro na ampulheta que contava na terra seu giro em torno do sól.
Quando cresci, comecei a trabalhar sozinho numa oficina de eletrônica. Logo descobri que tudo dependia das antenas e que elas existiriam para sempre, então, comecei a estudar e instalar antenas.
Três ferramentas eram essenciais para o meu trabalho. Um medidor de sinal para saber qual a quantidade de sinal eu estava recebendo ou transmitindo na antena. Um medidor de onda estacionaria para eu saber se eu estava irradiando com máximo esplendor. Um analisador de espectro para eu saber se radiografar a alma da minha instalação e saber se algum intruso na ar não estava subtraindo do sinal principal contra o meu interesse. Claro, era necessário também o sol brilhando no céu, na escuridão nunca me atrevia a subir em torres..
Certa feita estava eu no interior, trabalhando no acoplamento de duas antenas direcionais de alto ganho utilizando rádios de cinqüenta wats de potência, bem no topo de uma torre de trinta metros de altura, quando um raio caiu na torre. Todo mundo sabe que com o tempo ruim não se sobe em torres, muito menos se instala antena. É morte certa. Mas, a necessidade e o trabalho às vezes têm um relacionamento complicado. Quando eu subi na torre a noite vinha pela mão do planeta, mas na ampulheta parecia que tinha tempo para apertar o último parafuso. Não sei como ela se esvaziou tão ligeira. Lembro que de repente tudo ficou desconexo e na minha confusão confundi por alguns instantes o dia e a noite.
A queda terminou no chão. Fiquei deitado na grama sem compreender como eu tinha caído lá de cima sem me pisar. Não havia caído um pingo de água do céu, tinha sido um raio sem chuva. Olhei para cima e não vi a antena, pior, não vi a torre. Fiquei em pé num pulo.
Eu estivera instalando aquela antena de repetidora de telefonia na rota de micro ondas da companhia telefônica, num morro chamado Cerro Paloma, no município de Livramento –RS. Este morro parece ter sido feito a mão. Apesar de ser muito alto, tem um chapadão plano no seu topo onde fica a guarita com os rádios dentro e a torre com as antenas em cima. Em volta do Cerro, serpenteia uma difícil estrada de acesso desde o sopé até o alto.
Não conseguia entender o que havia acontecido. Teria o raio arrancado a torre do seu lugar? Mas onde teria ido parar? Caminhei até a beira das escarpas de onde se via todo o vale. Puxei um ar fundo para dentro do peito como se quisesse engolir a noite, foi então que ouvi alguém falando do meu lado.
-De onde você veio?
Era um homem, de batina preta e colarinho branco. Era magro e alto, possuía uma testa larga e um rosto liso quase sem barba, tinha um ar de pessoa inteligente. Fui muito cauteloso.
-Eu estava ali, e apontei para onde estivera a torre sumida, estava trabalhando quando caiu o raio. O Sr. viu alguma coisa estranha? O Sr. é um padre?
-Vi. E não sou padre, sou irmão marista da ordem de São Francisco.
-Viu a torre sumir? Viu o raio?
-Não sei do que estas falando o que eu vi de estranho foi o vento minuano soprando forte e caindo em cima de nós sem nenhum aviso. Tive que segurar a máquina de falar para não voar aqui de cima. A propósito meu nome é Irmão Roberto e o seu? Dito isso me esticou a mão delicada com dedos finos.
Depois de nos apresentarmos, contei para o Irmão Roberto aquilo que havia me acontecido. Ele me olhou calmo por um longo tempo e começou a falar assim.
-O que o Sr. falou, para mim é um absurdo, antenas de alta freqüência não existem, de onde o Sr. tirou essas idéias? Eu estou aqui em cima do morro testando a minha máquina de transportar a voz. Quero ver se consigo enviar algumas palavras á vinte quilômetros, estou num projeto para a marinha brasileira. Estou tentando fazer com que a minha voz seja recebida lá na cidade de Livramento que fica em linha reta exatamente á vinte quilômetros. Possuo três ferramentas poderosas para fazer isso. Um tanque bobina/capacitor, uma bateria e uma antena dipolo.
-São sempre só três respondi para ele. Mas não deixei que ele perguntasse mais nada, continuei falando. Posso ver seu equipamento?
Caminhamos até o acampamento onde estavam outros três irmãos igualmente vestidos.
-Irmão Moura, quem é esta pessoa que lhe acompanha? Perguntou um deles enquanto enchia a cuia do chimarrão.
-Encontrei na beira da escarpa acho que estava delirando, disse ser um técnico de Telecom.. não sei o que.
Curioso, me aproximei de uma mesa, onde havia muitos fios e equipamentos elétricos. O irmão tinha como fonte de energia um balde cheio de ácido de onde saiam dois fios, dentro do balde pude reconhecer discos de chumbo e de cobre, sobrepostos alternadamente e isolados entre si. O tanque era descomunal, a bobina era sustentada no ar com fios de cordão e ligava-se á duas placas metálicas paralelas entre si. Estas placas quando uma girava, mudavam a superfície de inteiração entre elas, reconheci logo como um capacitor variável. Dois fios em paralelo iam até um dipolo de meia onda com mais ou menos dez metros de comprimento para cada lado. O microfone era um pedaço de taquara cheio de pó de carvão com uma membrana tapando a tampa. Do centro saia dois fios compridos que iam se ligar no tanque.
-Funciona? Perguntei.
-Funciona, mas não é constante. Não consigo entender por que. Ora funciona, ora não.
-Experimentaram melhorar o acoplamento?
-E como o Irmão faria isso? Perguntou o religioso que estava sentado olhando com curiosidade para mim.
-Simples, cortando estes dois fios aqui que ligam a antena com o tanque para que fiquem do tamanho certo, assim poderá haver uma melhor transferência de energia dão tanque de RF e a antena. E para provar o que eu tinha dito, pedi licença e cortei em pedaços pequenos um metro no comprimento dos fios.
Ao cortar senti pelo tato que era um fio antigo enrolado com fios com capa de algodão.
Era fácil perceber naquelas pessoas a admiração desenhada nos rostos e nas bocas entreabertas. Continuei a falar sobre impedância, onda refletida, soma vetorial e outras coisas. O Irmão Roberto ficou todo o tempo muito atento com as minhas palavras. Alguém chegou por traz e nos convidou.
-Vamos ceiar?
Comemos todos sentados em volta de um fogão improvisado que foi feito da raiz de uma árvore tombada. O silencio era profundo, os irmãos comiam lenta e silenciosamente. Um deles comentou que naquele lugar caiam muitos raios, ninguém retrucou. No final, com os pratos lavados, o Irmão Roberto chegou-se a mim e disse;
-Meu filho, a novena para nos é uma hora sagrada. Depois da novena, não podemos falar até as matinas. Teremos que continuar nossa conversa amanhã depois de terminarmos de rezar as matinas, logo depois vamos testar o teu acoplamento.
Dito isso, me entregou um pelego de ovelha e um cobertor, me mostrou uma pedra dizendo.
-As pedras guardam dentro o calor do sol que pelas horas do dia a aqueceram, na noite é bom dormir junto á elas. O calor flui para nós nos aquecendo carinhosamente. Eu ia falar, mas o irmão marista sem interromper-se continuou.
Recebamos o agora com carinho tudo o que o antes nos legou.
Alguma coisa bateu fundo em mim com aquelas últimas palavra do irmão Roberto, mas o sono me venceu. Dormi sobre o pelego encostado na pedra quente e sonhei que o tempo passando ou a terra girando faziam o ruído do calor da pedra sobre o solo passando para mim no pelego.
Planeta, tempo, ondas, tudo se relacionava, assim como as ferramentas da minha família. O sono começou a se infiltrar em mim, mas eu pensava ainda naquelas pessoas que ali estavam. O que houve com o intervalo do tempo entre eu e eles? O imperceptível embalo do planeta, armado do silencio profundo da noite e mais o calor reconfortante que vinha das pedras me venceu e finalmente dormi tão profundo quanto ficam as coisas que não compreendemos e nos tiram o sossego na vida.
-Acho que ele está bem, teve muita sorte não quebrou nenhum osso.
Com essa frase acordei debaixo da torre. Eu estava sendo socorrido pela minha queda, tinha ficado uma noite inteira ali e de manhã quando resolveram me buscar haviam me encontrado ainda desmaiado.
Passado os comentários gerais sobre a minha queda e a sorte de não ter me pisado, contei para eles o meu sonho. Todos riram e debocharam do nome do Irmão. Um amigo até ironizou dizendo:
-Devia ser o Landell de Moura.
Quando estava caminhando em direção á caminhonete para descer o morro, algo começou a me coçar na canela. Abaixei-me para averiguar e encontrei preso na bainha da calça um pedaço de fio antigo enrolado em fios de algodão.
Livramento teria conseguido ouvir sem variações a voz do Irmão Roberto depois das matinas?
Nunca vou ter essas respostas, a terra onde nasce a nossa sabedoria, o sol de onde vem todas a energia existirão para sempre no firmamento e o Irmão Roberto existirá para sempre no coração dos homens. Três sempre três.
Uma antena bem acoplada pode modificar o homem. O homem modificado modifica as antenas. A ampulheta do tempo e o planeta apenas se movem em torno do sol sem se modificarem.
Ocorreu-me também que o lugar entre aqueles que tudo sabem e os que nada sabem é onde sempre estamos. Neste mundo não existem a divisão do tempo, como o passado o presente e o futuro, pois tais divisões, como pude ver, contrariam-se num momento do presente como aconteceu no Cerro Palomas, A vida tem só um verdadeiro sentido. O meigo marista e eu temos o mesmo presente. Por isso pude fazer aquele acoplamento naquele lugar. Nada está parado, tudo se move e se encontra no lugar presente. O Marista me dissera:
-Desfrutemos com carinho o agora e o antes unido..
Teria o inventor das telecomunicações, conseguido fazer esta abstração sutil do tempo enquanto me aconselhava a roubar o calor da pedra para me aquecer no pelego?
Tem sonhos que são mais importantes que a realidade e tem realidades que não valem um sonho. Ou então, os sonhos e a realidade são como o passado e o presente, fundem dentro de nós.



FIM

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

O PALCO DO COMO



Tudo tem um porque, mesmo que nós não conheçamos a resposta. A causalidade, por exemplo, obedece a um princípio que á regulamenta, se não conhecemos, podemos apelidar de sorte, conhecidência, sem querer ou mistério, mas na verdade a causalidade está apenas obedecendo ao quarteto do “onde” do “quando” do “por que” e do “como”. Gosto muito do “como” por isso resolvi contar um acontecimento de como os opostos se identificam.
Onde exatamente termina a nossa atmosfera terrestre e começa o vácuo do espaço? Onde numa roseira, exatamente se separa a raiz do caule, dos galhos, e do talo e da flor? Onde termina o mar e começa a praia? Onde exatamente o Norte deixa de ser Sul? Se tudo está interligado pelas partículas onde exatamente a matéria se separa uma da outra? Este lugar fascinante é o Palco do Como Racional da minha história.
Nossa cultura está armazenada no estojo biológico da nossa mente, num lugar obediente a todos os fenômenos físicos. Sendo assim, pode a nossa cultura não ser serva das mesmas regras e princípios do mundo físico? O palco se repete no invisível e é essencialmente igual. Onde termina o certo e começa o errado? Onde exatamente o bem e o mal se limitam? Existe um lugar onde não cabe nem a crença nem a descrença? Como dizer exatamente quando começa a tristeza e acaba a alegria? Este lugar fascinante também é o segundo palco ou o Palco do Como Emocional da minha história.
Tudo interage sem respeitar os limites. A ciência racional no seu crescimento, vê-se muitas vezes obrigada a expiar para fora das suas fronteiras a dar espaço científico para o não científico. O fantástico na sua jornada emocional vê-se também muitas vezes obrigado a espiar para fora e dar espaço fantástico para o não fantástico.
Entre o limite do que acaba e o limite do que começa, existe o intervalo das transformações. Um lugar ambíguo e incerto, um lugar onde todas as perguntas possuem duas respostas e todas as respostas aceitam duas perguntas. Um lugar singular que permite com que um limite não faça fronteira com outro limite. Este lugar eu chamo apenas de Palco do Como.
Nesta intersecção onde habita em harmonia o sim e o não é o grande palco das mudanças, é ali o lugar onde mora a dúvida, o exotérico, as leis físicas e as crenças religiosas. Tudo numa relação caótica e conveniente. É ali o lugar onde tudo interage fazendo com que a desordem origine a ordem. Talvez este lugar bem dentro de nós, tenha replicado o centro do planeta que vivemos, onde a matéria se degenera por ação de uma força imperadora que é a gravidade. No centro do nosso planeta a estrutura clássica da matéria deixa de existir, criado um palco para explicar como tudo funciona na superfície. Nosso planeta não seria como é se não houvesse a matéria degenerada no seu centro. O homem não seria como é se não houvesse no seu intimo o Palco do Como.
Dizer que os fatos acontecidos foram por acaso, seria não considerar as profundas interligações materiais e abstratas que regem o mundo onde vivemos. Gosto de pensar que foi mais um fato regulado entre os limites das inteirações conivente ou simplesmente no Palco do Como.
Fazer funcionar é tão importante quanto entender o funcionamento e um não é condição do outro. Para fazer funcionar é necessário talento, para entender é necessário conhecimento. Estes dois valores têm uma inteiração diferente e conveniente na raça humana. Em algumas pessoas especiais esta característica é extremamente acentuada e sobre estes dois seres, sabemos apenas que um tem o talento inato e o outro é congênito.
Existe o desconcertante fato de alguém conseguir dizer assim:
-Não sei por que está estragado, mas sei como consertar. Ou então dizer:
-Não sei como isto estragou, mas sei por quê.
Os dois casos habitam o Palco do Como.
No ano de 1985 o satélite brasileiro brasilsat trouxe uma enxurrada de serviços para os anteneiros de todo o Brasil, eu me especializara em instalar repetidoras de televisão com sinal provido de uma antena parabólica apontada para o satélite brasileiro. Para executar os serviços que normalmente era contratado pelas prefeituras, viajava com a companhia do Alberto. O Alberto era um físico teórico que adorava contar piadas, e assim, muitas noites na estrada o Alberto me fizera trocar o sono perigoso pelo riso seguro.
Todo mundo conhece um “faz-tudo”, é aquela pessoa que sabe trabalhar com hidráulica, pintura, alvenaria, mecânica, eletricidade, jardinagem, marcenaria e até com antena. Esta figura humana, ela existe sempre perto de nós, diria até que não vivemos sem o faz-tudo. O Alberto era um faz-tudo da física teórica. Não havia campo da ciência física onde o Alberto não era especialista, navegava intelectualmente na física clássica, no relativismo geral e restrito, na mecânica quântica e na astronomia. Era também um ótimo anteneiro. Este manancial de conhecimentos, misturado ao molho do bom humor, fazia com que qualquer distância na estrada ficasse rápida de ponta a ponta.
Certa feita partimos para uma viagem rumo à fronteira gaucha e depois de um dia inteiro de viagem de carro, chegamos ao município de Santana do Livramento, onde iríamos colocar a rede de televisão Record no ar. Entramos na pequena cidade fronteiriça junto com o crepúsculo, eu só pensava no hotel onde iria tomar um banho, jantar e dormir. Porém, ao passar por uma esquina, uma fila enorme de pessoas me chamou a atenção, não estavam vestidos para uma festa e pareciam pessoas tristes.
Acomodamos as malas no hotel e fomos para a recepção conversar e jantar. Depois das apresentações, começamos a conversar com a hoteleira que gentilmente nos recepcionara.
Era uma mulher que estava grávida de oito meses e no meio dos assuntos sobre a cidade e o que tínhamos ido fazer lá, perguntei-lhe que motivo havia para aquela fila de pessoas tão grande na rua no início da noite. Surpreendentemente recebi esta resposta:
-É a fila dos doentes que buscam a cura fora da ciências medicas; Todos estão ali para ser atendido pelo Shamã amanhã, vem gente de todos os lugares, ele é proibido pelas autoridades brasileiras de entrar no Brasil, então, ele atende ali no outro lado da rua que é a divisa entre o Brasil e o Uruguai. Bem perto da torre da televisão onde vocês irão trabalhar.
A janta e a conversa acabaram, o cansaço chamou a cama, a cama chamou o sono e o sono findou o dia. Num mergulho delicioso, transpus o limite conveniente que interage entre o estar acordado e o sono profundo mergulhando no silencio delicioso da madrugada.
No outro dia bem cedo, lá estávamos nós na torre, montando as antenas painéis para irradiarmos as imagens de TV moduladas numa freqüência de VHF. Eram antenas grandes e pesadas, tínhamos que lentamente içarmos para o alto da torre e ás fixar no lugar com muito cuidado. O Alberto lá de cima tinha uma visão panorâmica do terreno onde o Shamã atendia as pessoas da fila que haviam varado a noite na espera da sua vez. Estranhei muito o Alberto não fazer piadas e brincadeiras, durante o nosso trabalho, ele passou a manhã toda lá em cima muito sério e em silêncio, falando o mínimo necessário.
Cabeamos o cabo coaxial e o fendamos no lugar correto para tirarmos uma amostra de sinal para o medidor de onda estacionária. O transmissor possuía uma potencia de 50W, a onda estacionária acusava um retorno de 5W que fazia o sistema operar com 80% de eficiência. Estava perfeito, o sistema teria a última área de contorno dentro do projeto técnico. Nisso o Alberto, que havia descido da torre, entrou na guarita onde eu estava e disse.
-Eu vou lá ver isso de perto.
Alguma coisa estava errada, o Alberto parecia brabo, a mala de ferramenta estava na sua mão e de mala em punho se dirigiu para o terreiro onde o Shamã atendia os pacientes, claro que eu segui o Alberto de perto, temia alguma brejeirice do amigo que pudesse repercutir mal na cidade. Com o pretexto de irmos testar a imagem de televisão, abreviamos toda a fila e entramos no pátio.
Uma enfermeira disse alguma coisa para o Alberto, mas este passou por ela como se ela fosse invisível. Caminhou até onde estava o Shamã e ficou do lado de pernas abertas e maleta na mão.
Um paciente se aproximou e inseguro olhava ora para o Alberto ora para o Shamã os dois tinham ficado por um longo tempo se mirando em silencio. Senti que havia se criado um campo estranho entre eles, resolvi sair da sua cobertura, recuei até uma mesa perto de uma janela e fiquei assistindo aquele afrontamento humano.
O estranho começou com as palavras do Shamã.
-É bonita a vista lá de cima? Dá para ver tudo? Dito isso, pegou uma faca em cima da mesa e se dirigiu para o paciente. Levantou a cabeça do homem e deu um talho no pescoço. Eu, encostado na mesa, não podia acreditar em como o homem não gritara de dor, mas o pior veio em seguida, o Shamã enfiou um dedo no corte do pescoço do homem que de olhos fechados nem gemia. No dedo em anzol do xamã veio uma glândula. Havia operado a amígdala do homem. Uma gaze um esparadrapo uma recomendação: Hoje não fala muito. Foi à vez do Alberto:
-Lá em cima é um lugar que só trabalha quem entende. Dito isso abriu a mala e retirou um medidor de nível de sinal. Mediu 40mw/cm² e crescentou esta frase:
- O que não dá para medir não existe. O Shamã que estivera atento no Alberto retrucou:
-Não existir não quer dizer que não esteja lá. Dito isso, colocou a mão no ombro do outro paciente que timidamente se aproximara e enfiou a faca num olho do homem. Havia operado uma catarata. Uma gaze um esparadrapo e um aviso: Semana que vem operamos o outro. Foi à vez do Alberto:
-O limite de uma caminhada quando tendemos para lá pode não existir, mas pode ser calculado e tudo que pode ser calculado pode ser medido. Dito isso retirou da mala um frequêncímetro e mediu a freqüência de 52,75MHz irradiada pelo painel de antena na torre.
-Tens que saber enxergar depois dos limites, tu estavas nas alturas, não vistes nada?
-Lá de cima somos seduzidos pela beleza de tudo o que os nossos olhos alcançam. Quando se está na altura tudo é mais bonito, lá, somos observadores limitados pelo real.
-O que acontece no centro regula o que acontece no largo disse o shamã.
-Sim, mas as leis não são as mesmas. Neste assunto o Alberto era perito.
-As leis podem não serem as mesmas, mas os dois lados definem o tudo. Não é essa uma prova de que pode existir ali e não estar ali? Estar do outro lado? Dito isso o shamã limpou a faca com uma toalha como se fosse um açougueiro, mas com o porte altivo de um nobre.
O Alberto fechou a mala lentamente e falou:
-Mas se tu errares alguém sairá perdendo muito.
-Nesses casos, que são raros, eu considero como um aprendizado e busco motivação para não errar mais. Quanto a ti, procurastes uma arena estranha para vencer na vida, uma arena onde existe platéia só de um lado.
-Não me importa muito as vitórias ou as derrotas, me importa não enganar, as antenas são a minha escolha de luta na arena desta vida. O fruto do meu trabalho é conveniente para toda a meia platéia a que te referistes, não somente a uma pessoa como no teu caso, com as antenas eu atinjo a todos. Ao dizer isso o Alberto irradiava o orgulho de um nobre.
-Eu por outro lado, já me contento com um por um. Também vi orgulho nestas palavras do Shamã.
A faca estava limpa numa mão e na outra com um martelo o Shamã tentava enterrar a faca na coluna de uma senhora que em pé nada reclamava. O debate continuou entre eles, mas em certo momento sai do local. Eu tinha a impressão de que quanto mais os dois se enfrentavam, mais se definia uma terceira solução, resolvi meditar sozinho. Entrei num bar e pedi uma cerveja.
Com o olhar que atravessando a janela se perdia no longe, fiquei meditando sobre aquela conversa estranha que eu havia presenciado por dois faz-tudo da natureza. Por dois homens de lados opostos.
O Alberto chegou depois da terceira cerveja. Sentou-se à mesa e ficou olhando para as suas mãos.
-O que estas olhando Alberto?
-Dos meus olhos até a última fronteira das minhas mãos é tão distante quanto dos meus olhos até a última fronteira do céu. Eu viajo para um lado e aquele Shamã para o outro.
Ficamos um tempo em silêncio, até que como uma bolha de ar vinda do fundo do lago um pensamento me aflorou. Coloquei a mão no braço do meu amigo e falei:
-Vocês dois estão certos, mas entre os dois mundos diferente de vocês existem um lugar de inteirações não resolvidas, aquela gente que vai lá sente isso, e se alimentam na esperança convenientemente. Continuei:
-Alberto, para algumas funções matemáticas, o limite desta função quando viaja para o nada é o tudo. Isso quer dizer que em certas situações muito especiais, quase que paradoxalmente um de vocês pode ser a resposta do outro.
O Alberto pareceu se sentir melhor, ia falar quando a hoteleira grávida que tínhamos conhecido na recepção do hotel, levantou-se de uma mesa vizinha e se aproximou de nós.
-Então, estão convencidos?
Não, disse o Alerto, vi coisas que parecem estarem erradas, ainda e não estou bem convencido, mas vou procurar uma resposta satisfatória, quem sabe o errado esteja encobrindo o certo.
A mulher acariciou a barriga onde um nenê se formava e respondeu para o meu amigo.
-Muita gente hoje foi lá consultar com o Shamã, muitos se submeteram a uma intervenção cirúrgica fantástica, outros receberam receitas ou conselhos, alguns ficarão completamente curados outros não, o Shamã e os que acreditam nele podem até estar errados nas suas verdades ou atitudes, mas uma das melhores coisas das nossas vidas são muitas vezes os nossos erros. Disse isso alisando a barriga e olhando bem dentro dos olhos do Alberto, depois se afastou da nossa mesa.
O Alberto esticou o braço até a garrafa, lentamente começou a encher o copo, largou a garrafa no mesmo lugar e sempre com movimentos lentos começou a beber. Sorveu toda a bebida de olhos fechados, seus pensamentos fervilhantes simplificavam, deduziam, racionalizavam, comparavam, equacionavam, ponderavam e principalmente transpunha limites, mergulhava no Palco do Como. De repente deu um tapão na mesa, alargou um sorriso no rosto e começou a contar piadas.
-Eu já contei ara vocês aquela do cara que estava em cima da torre muito alta e deu uma baita vontade de mijar..?
De noite na cama, antes de dormir pensei que a nossa viagem para Santana do Livramento poderia ter começado junto com a viagem do Shamã, vindo a eclodir bem no lugar de inteiração onde a compreensão começa a nascer, no Palco do Como. Assim como o nenê na barrida da hoteleira que quando transpassa o limite da inteiração conveniente passa a ter vida. Num lugar onde existe platéia nos dois lados da arena.
Não sei quando as coisas transformadoras irão acontecer, não sei por que elas acontecem, não sei onde está previsto acontecer. Sei somente que esta história assistida por mim é só uma das infinitas histórias ocorrida no Palco do Como onde construímos na nossa existência a nossa civilização.

FIM