quinta-feira, 30 de junho de 2011

O TIO ARI

O TIO ARI


Acreditamos facilmente naquilo que não perturba nossos sentimentos, somos herdeiros de um senso de verdade sensitivo. No entanto, precisamos do equilíbrio entre o que sentimos e o que racionalmente demonstramos, mas é o que não entendemos o grande desafio.
Uma história absurda, as vezes, contada de um determinado jeito, pode ser um invasor que penetre na nossa ignorância e ajude a transformar cegueira em visão, engano em acerto, milagre em fenômeno e tanto mais, visto que existimos num universo enorme e o imaginamos na escuridão. Aqui no planeta azul, a verdade da realidade é compreensível e soberana, perturbe ou não perturbe os nossos sentimentos. Uma boa história pode nos ajudar a iluminar a sombra do estranho que habita nosso desconhecido, esta história quando for bem contada nos modifica. Foi o meu tio quem ascendeu a lâmpada do meu quarto mais escuro. Vou contar a história.
O tio Ari era um parente que não era muito bem considerado por todos. Ninguém da família dava muita importância para ele. O tio Ari era apenas o marido da minha tia, e o pai dos meus primos. Nas suas conversas existia alguma coisa estranha como se estivesse sempre falando por alguém. Todos achavam que ele era um tolo, pois ele contava uma história inverídica com a convicção da verdade. Assim, ninguém acreditava nele porque o mentiroso carrega consigo o estigma do emocionalmente desequilibrado ninguém quer se identificar com ele.
Mas nem sempre foi assim. Seus pais eram donos de um frigorífico na cidade de Putinga e muitas vezes o tio Ari havia varado noites inteiras dirigindo um caminhão carregado para Porto Alegre. Era uma atividade difícil a de ser um caminhoneiro e de muita responsabilidade. Naquela época os veículos movidos a diesel eram lentos, fumarentos e de pouca confiabilidade mecânica. Ainda por cima as estradas não eram asfaltadas e o caminhão que não possuía direção hidráulica podia a qualquer imperícia tomar a direção do motorista.
O tio Ari nunca se acidentou. Em muitas madrugadas frias, sozinho no meio da estrada que era quase uma trilha o tio Ari havia trocado pneus, sangrado o óleo do motor, trocado mangueiras e reapertado o cordame da lona da carroceria que abriga a carga.
Estas bravatas aconteciam na década de cinqüenta quando o Rio Grande do Sul possuía ainda muito poucas estradas bem asfaltadas.
Contam os colegas de trabalho, que um dia, chegando de uma viagem o tio Ari estava diferente. Entrou com o caminhão erroneamente no pátio do frigorífico provocando uma colisão desnecessária com três outros caminhões estacionados. Quando entrou no escritório da firma que pertencia ao seu pai, ele contou o acontecido:
-Eu já tinha passado pela cidade de Encantado, e faltavam menos de trinta quilômetros para chegar aqui. Vocês sabem, neste trecho a estada é um tapete vermelho cortando o campo verde. A lua estava bem em cima do caminhão, clareando tanto que dava para ver o azul do céu. Foi quando eu vi pelo retrovisor uma luz da cor da lua me seguindo. A principio pensei que fosse outro veiculo, mas em seguida percebi que seu facho vinha das alturas, não podia ser um avião porque pulava por cima das curvas. Era uma nave espacial. Passou por sobre o caminhão quase batendo e desceu no campo. Travei o REO e fiquei olhando tremendo de medo. A nave brilhava como se fosse um cristal iluminado por dentro. Toda a natureza era vermelha verde e azul, o brilho da nave e da lua produzia matizes de cor dando á natureza em minha volta um ar de puro encantamento.
Como se tivesse recebido uma ordem, pulei para fora da boleia e caminhei até a cerca de arame. Uma porta se abriu na nave e uma rampa apareceu, descendo por ela uma porção de homenzinhos pequenos, de cor cinzas e de olhos grandes oblíquos, plantados numa cabeça enorme, lentamente desciam a rampa. Um deles começou a caminhar em minha direção e quanto mais perto chegava de mim, mais meu medo sumia, uma paz enorme invadiu meu peito. Veio até a cerca e esticou o braço. Passei pelos arames e caminhei na direção dele como se fosse uma criança chamada para ganhar um presente. Lembro que eu caminhei com ele de mãos dadas em direção a luz, depois disso não me lembro de mais nada, me acordei debruçado sobre o volante do caminhão hoje de manhã e o encanto sumira.
Este relato do tio Ari feito para mais de vinte pessoas numa cidade pequena do interior foi a sua condenação fatal. Meu tio transformou-se quase que instantaneamente no deboche de todos que moravam naquela cidadezinha, passaram a falar assim:
-Lá vai o amigo dos marcianos.
-O Ari tem amizade na Lua com os lunáticos.
-Coitado perdeu o juízo.
-Lá vai o caminhoneiro que passeia de mãos dadas com os homenzinhos do espaço.
Daquele dia em diante ninguém mais acreditou em nada que o tio Ari falava, e sempre que havia uma oportunidade num grupo de amigos alguém pedia para o tio Ari contar a história dos homenzinhos cinza com o propósito exclusivo de fazer piadas e dar risadas.
Ninguém, mas ninguém mesmo se deu ao trabalho de procurar por alguma evidência na história, mesmo quando confirmaram que o tio Ari havia saído de Porto Alegre numa segunda feira e chegado em Putinga na sexta feira. Ninguém perguntou por onde ele e o caminhão andaram por todo aquele tempo. Uma viagem daquelas não levava mais que dez horas quando o caminhão não estragava. Por aquele caminho muitos outros caminhões do frigorífico viajavam diariamente, seria impossível não terem encontrado o caminhão se tivesse estragado na estrada.
Naquela época o tio Ari era recém casado com a irmã da minha mãe e para continuar casada, ela exigiu que saíssem de Putinga, pois não agüentava mais as pilheras que faziam com o marido. Vieram então morar em Porto Alegre bem perto da casa dos meus pais.
Quando criança, eu e meus primos ficávamos encantados com a historia do tio Ari, corríamos para perto dele e para nos diverti pedíamos assim:
-Conta, conta tio, Conta de novo como eram os homenzinhos.
O tio Ari olhava para nós e contava a história como se fosse pela primeira vez. Contava com emoção, com detalhes que nos fascinavam. Descrevia a nave, falava dos olhos grandes e amendoados e da pele macia, da expressão de bondade no rosto dos pequenos cinza. Todas as nossas perguntas eram respondidas com carinho e clareza.
-Eles eram maus?
-Não. Eles eram muito bons, só queriam o bem.
-Eles eram marcianos?
-Não. Também perguntei isso para eles e eles disseram que o planeta deles ficava no tempo a uma distância milhares de vezes mais longe do planeta que nós chamamos de Marte.
-Eles eram feios?
-Um silêncio pensativo e a resposta: Eram.
-Tu não tiveste medo?
-Eles não deixaram eu ter medo.
E assim por muitas tardes o tio Ari nos encantara com a sua história contada sempre com detalhes fascinantes e criativos, contada sempre de forma diferente. O enredo da história não mudava, mas a forma de contar eram sempre lindas e ricas de detalhes novos. Mas isso também ninguém notou.
Os anos foram passando, eu me tornei um técnico especializado em antenas. Dominei o conhecimento teórico de eletromagnetismo. Fiz curso de pós-graduação em telecomunicações e fui trabalhar com antenas.
Certa feita minha tia já velinha pediu para eu instalar uma antena de TV para ela. Peguei dois funcionários, todo o material e rumei para a casa do tio Ari. Ele estava deitado e não se levantou. Conversei com a minha tia na cozinha até que um técnico gritou lá da frente:
-Tá pronto.
Fui até a sala e conferi a qualidade da imagem nos canais de TV um por um. Primeiro analisei o pigmento, a convergência dinâmica. Tirei as imagens refletidas e conferi a diferença de amplitude entre o áudio e o vídeo que deve ser de 12dB.
Sentado num banquinho e com a tampa trazeira do televisor aberto tinha as ponteiras do osciloscópio na mão para regular a crominância. O olho humano é mais sensível á luz verde-amarelo que as luzes azul ou vermelha, mas eu sabia que esta natureza humana muda com a idade, eu tinha um problema que não era técnico, eu queria regular o colorido da TV para os olhos dos meus tios.
Numa regulagem padrão de crominância, atribui-se para as cores as seguintes proporções, 30% para o vermelho, 11% de azul e 59% de verde. Mas qual seria a percentagem perfeita para os meus tios?
Foi quando ouvi a voz do tio Ari atrás de mim:
-Aumenta o vermelho. Olá tio, que bom que o senhor está aqui. Acha que melhorou? Dito isso girei um trimpot na placa da TV e o vértice do triangulo das cores que eu via no osciloscópio moveu-se.
-Perfeito. Deixa assim, está como as cores da natureza á noite quando duas fontes de luz revelam a presença de tudo. Disse isso e se retirou para o pátio da casa.
Terminei de fechar a TV e dei os ajustes por findos. Depois fui até o pátio olhar a antena instalada sobre a casa. No pátio, com as mãos para trás e olhando para a antena, o tio Ari com os cabelos brancos embalados pela brisa do vento, olhava em silencio para a antena.
-Então tio, gostou do serviço?
Ele me olhou bem fundo nos olhos e disse:
-Gostei principalmente das três cores e do brilho. Já vi isso antes. Queres que eu te conte de novo?
-Não tio, eu adoraria, mas hoje estou muito apurado, só vim aqui para ver vocês. Estou indo para a praia. Meu tio sem importar-se com minhas palavras perguntou.
-Por que esta antena recebe as imagens da TV ?
-Ora tio foi feita para isso.
-Não é uma boa resposta.
-Bem tio, então é porque a emissora tem outra antena que está transmitindo para esta.
-Ha. Esta é uma boa resposta. Acreditar nisto é acreditar numa boa história colorida. Que bom que acreditam em ti. Dito isso rumou para dentro de casa e entrou no seu quarto fechando a porta.
Sai dali contrafeito. Não acreditava na resposta que eu havia dado para o tio Ari. Eu sabia que as equações que sustentam o fenômeno da propagação da onda eletromagnética são exatas, mas não respondem o “por que”. Na verdade a causa de uma onda eletromagnética se propagar é uma invenção não uma descoberta. O fenômeno nunca foi explicado satisfatoriamente. Outra coisa que me incomodava era sobre a história que o tio Ari sempre contara, com o passar dos anos fui ouvindo comentários jornalísticos sobre pessoas que disseram terem visto visitantes que vieram ao nosso planeta e as figuras descritas eram semelhantes com a descrição dada por meu tio a mais de cinqüenta anos atrás. Poderia...?
E aquela frase que o meu tio havia me dito antes de se retirar para o quarto? “Acreditar nisto é acreditar numa boa história colorida”. O tio Ari sempre fora desconcertante com suas palavras.
Despedi-me da minha tia e fui embora. Como no outro dia começava um feriadão, comecei a me organizar para um repouso de três dias, me dirigi para a casa. No outro dia, bem cedinho sai de viagem para o litoral norte de Santa Catarina. Iria descansar na praia e meditar sobre modulação.
Meu corpo corria na estrada para frente dentro do carro e os meus pensamentos corriam para dentro do poço das lembranças. E se fosse verdade? Se o tio Ari não tivesse mentido? Naquele tempo quando ele começou a contar a história dos homenzinhos este assunto era um absurdo, mas hoje. a existência de visitantes no nosso planeta é uma questão científica aceita por muitos cientistas de renome. Não se debocha mais desta possibilidade. Se a historia for verdadeira, em que solidão terrível eu e todos os outros condenamos o tio Ari. Quando eu voltar vou dizer para ele que eu acredito nele. A combinação das três cores com o brilho pode criar muitas variâncias de cores, estas variâncias se ordenadas numa combinação adequada podem obedecer a um protocolo que armazenem na ordem das cores uma mensagem. Isso é pura e simplesmente uma modulação. Quem sabe o tio Ari tenha sido o receptor destas mensagens e há tantos anos esteja nos dizendo algo. Sempre, mas sempre que ele contou sua historia, tinha extremo cuidado em descrever as cores de todo o cenário do acontecimento. Quem sabe neste tempo que eu vivo ainda seja prematuro para entender uma forma mais sofisticada de comunicação que seja baseada na permutação das cores?
A manhã correra ligeira, eu já estava quase chegando quando o meu telefone celular tocou. Era a minha tia.
-Oi tia, tudo bem?
-Não. Estou te ligando porque o Ari faleceu.
A tristeza da voz no telefone passou para o meu rosto, mas não parou. Invadiu meu inconsciente sem cores onde dorme o remorso.
-Como foi tia?
-Ele morreu inesperadamente, estava sentado na frente da TV e disse assim:
-Sem brilho não existe cores.
Depois simplesmente encostou a cabeça no encosto da poltrona e fechou os olhos cansados. Morreu como se sua vida houvesse simplesmente sido desligada. Vamos enterrar o Ari amanhã de manhã.
-Eu vou estar ai contigo tia.
Em pouco tempo cheguei à casa da praia, descarreguei o carro, me desvencilhei de algumas obrigações, pulei para o volante. Sabia que o mesmo tempo de vinda me separavam da volta. A estrada não parecia ser de retorno, pois os meus pensamentos seguiam numa ordem crescente de pensamentos.
Cheguei ao cemitério depois do velório, bem na hora do que haviam resolvido fazer o enterro, o caixão fechado estava sobre o túmulo só esperando a ordem para ser baixado na cova funda da última morada. Minha tia chegou perto de mim e disse: Ele sempre gostou muito de ti, queres dizer as últimas palavras? Aquele convite me pegou de surpresa, mas não levei nem um segundo para responder.
-Quero!
Com muito cuidado fui escolhendo as palavras que expressassem melhor tudo aquilo que eu nunca dissera antes:
Estamos aqui reunidos para nos despedir do tio Ari, somos todos ligados a ele por laços sanguíneos ou de amizade. Nem todos nós nos conhecemos, mas todos nós conhecemos a história do tio Ari. Quero agora na presença de todos vocês fazer o meu depoimento de despedida. Tio Ari eu acredito na sua história, desculpe não ter dito isso olhando nos seus olhos, mas a sua vida foi curta para que eu vencesse toda a estrada da compreensão. O senhor foi a fagulha que incendiou a minha imaginação. Com o senhor eu ampliei os meus limites ao olhar para o céu e não me sentir sozinho. Desde a minha infância o senhor foi um super-herói capaz de sustentar a sua verdade mesmo quando ninguém acreditava. Desculpe tio Ari por ter sido um dos seus carcereiros que o manteve na solidão daquele em quem ninguém acreditou. O senhor viveu a vida que poucos homens viveram, viveu a vida daqueles que são condenados a mudar a opinião de todos, que ajudam a iluminar o desconhecido. Pena tio Ari que eu não consegui entender a tempo que o senhor passou sessenta anos ensinando que o mundo que vivemos é muito maior do que percebemos e que só admitindo a sua vastidão de possibilidades é que podemos então começar a entender nossa realidade neste planeta.
Tio, desejo do fundo do coração que um dia eu também encontrasse os homenzinhos cinza de cabeça e olhos grandes, eu diria a eles que o senhor cumpriu a sua missão e que a semente que o senhor plantou irá germinar em nós que ouvimos tantas e tantas vezes a historinha que o senhor incansavelmente nos contou. Quem sabe tio Ari se alguém ainda não virá a provar a sua história. Descanse em paz meu tio e obrigado pela sua infinita paciência ao me contar a sua verdade sempre de maneira tão linda. O senhor sempre foi um caminhoneiro, no inicio sua carga pesada era inanimada, depois sua carga pesada passou a sermos nós. Sua jornada chegou ao fim e a sua viagem trouxe para nós a certeza de um mundo maior onde precisamos encontrar dentro de nós um brilho de luz para que encontremos as cores da beleza.
Do fundo do meu coração obrigado por me emocionar tantas vezes e finalmente tio, descanse em paz. Eu acredito no senhor.
Lentamente o caixão desceu para dentro da terra, para o único lugar aonde vamos que não existe sentimento, razão ou cor. Para o único lugar onde não há esperanças de nada. Para a morte eterna e escura. Todos os presentes estavam em silencio e de cabeça baixa.
Acreditar nisto é acreditar numa boa história colorida.


FIM

segunda-feira, 27 de junho de 2011

CONTOS DO ANTENEIRO

A FÁBULA DO ANTENEIRO


No éter, a matemática que conversava com suas amigas, a lógica e a computação disse:
-Conviver com vocês é como a água conviver com o sal ou o açúcar. Sempre que estamos juntas nos transformamos em algo diferente, mas não consigo nos enxergar em conjunto, parece que quando isso acontece somos apenas arquétipos.
A lógica com bom senso pondera.
-Como esta premissa é verdadeira, quer dizer que o teu argumento é válido, e é fato que às vezes nos fundirmos em uma só. Estamos conversando, logo quando vier o silêncio estaremos isoladas de novo. Compreendo a nossa unidade, também me escapa qual arquétipo que formamos juntas.
A computação cheia se algoritmos sutis e que só precisava de uma entrada no problema para procurar a solução, se logou assim:
-Preciso formalizar a opinião de vocês para representar a decisão da minha opinião. É de fundamental importância que as amigas me falem de forma mais técnica ou que abordem este problema com uma modelagem, uma codificação ou mesmo com um sistema físico que funcione. Nos meus infinitos bancos de dados não existe espaço para arquétipos. Também eu gostaria de saber o que somos quando estamos formando uma unidade só.
A matemática com a graça de uma demonstração suspirou fundo e com palavras que pareciam um lamento falou alto como se fosse para si mesmo.
-Como conseguir um modelo representativo de nós três? Tentei a simulação usando transformadas e não deu. Tentei singularidades usando os limites e não deu. Tentei diferenciar os pontos que nos tangenciam e não consegui. Quando nos integramos somos uma grande área. Área de uma dimensão não existe, áreas de duas são banais e em três dimensões são impossíveis. Por isso não encontrei nelas a resposta.
Novamente no éter as três maravilhas se sublimaram e como as nuvens ficaram com a aparência de algo difuso. Eis que de repente, no meio do éter a lógica falou:
-Sou um sistema lógico, um conjunto de axiomas e regras de inferência que visam representar formalmente o raciocínio válido, por isso digo que precisamos visitar um modelo que funcione, precisamos sair do eter e ir para o espaço físico.
Tres vibraçoes de dúvida irradiaran-se hominidirecionalmente no éter. A matemática que primava pela exatidão falou:
-Estas falando de ir na morada da luz ?
-Sim.
Mas lá nada é definitivo! A luz e a materia estão sempre fazendo trocas de intimidades. Tu bem sabes que a luz e a matéria disputam a natureza das coisas. Lá não tem lugar para mais nada. Como vamos sobreviver naquele reino?
-Eu faço isso a todo instante disse a computação com parcimonia, estou acostumada com este princípio de incerteza. A idéia da amiga tem uma probabilidade tão alta de estar certa que eu diria que é correta.
A logica, sentindo-se ameaçada na ascerção da sua própria idéia, com gestos languidos questionou:
-Mas como faremos isso?
Com um trejeito de perfeição a matemática que gostara da idéia da amiga, com voz meiga de quem nunca se corrige falou assim:
-Ora, eu sei como fazer isso, basta que durante um intervalo infenitesimal do tempo para a luz e a materia, fiquemos lá, entre elas por um dia inteiro nosso.
Foi a vez da computação falar:
-E qual vai ser a nossa naturena neste lugar?
As outras duas responderam em coro:
-Pois quem decida isso, que seja a própria natureza. A lógica que era quem mais procurava a verdade para não errar ainda completou:
-A natureza é muito prescritiva.
Assim, houve um dia que durante um infinitésimo de tempo o sól não brilhou, por um infinitésimo de tempo a terra não girou por um infinitésimo de tempo. O tempo não passou por um infinitésimo de tempo. Por um infinitésimo o tempo se separou do espaço. Foi um capricho de quem era responsável por tudo.
Então, durante um dia inteiro para elas que não passara de um intervalo infinitesimal do tempo, aqui na terra, a computação foi os continentes, a lógica que era muito maior foi o mar e a matemática onde as duas outras cabiam dentro foi o planeta. O resto era só filosofia. Elas haviam se transformado em algo capaz de responder ao grande enígma do “por quê”. Elas haviam transformado o planeta Terra em uma grande antena que do mais fundo do universo, tudo captava, tudo recebia, tudo equacionava. Elas sabiam agora que unidas não eram mais um arquétipo, eram a melhor antena de todas as galaxias e nesta forma encontravam todas as resposta posíveis. Nunca mais se sentiram um arquétipo quando estavam unidas.


FIM

sexta-feira, 17 de junho de 2011

BELONI

BELONI


Eu era um estudante de engenharia na Universidade Federal do Paraná em 1.969 quando resolvi participar do Projeto Rondon. Alguns colegas criticavam dizendo que aquele projeto tinha a nociva intenção militar de afastar os estudantes politizados dos contextos políticos no Brasil. Eu era um ativista, mas também estava cansado e aquela oportunidade tinha o sabor de ferias. Inscrevi-me, fui selecionado e parti.
As hélices do avião do CAN (Correio Aéreo Nacional) impulsionavam para frente um possante Douglas-DC-3. Dentro deste avião ia eu e mais 35 alunos dos mais diversos cursos superiores, todos incumbidos da proposta de realizar atividades que promovessem a inteiração entre os universitários e as comunidades do interior do Brasil.
Descemos em Belo Horizonte e nos hospedaram no colégio militar. Feita e distribuição das tarefas, fomos transportados em grupos para diversos destinos, o meu e de mais onze colegas foi para uma vila chamada Buritis. Hoje Buritis e um município do Estado de Minas Gerais com uma população enorme, mas naquela época era pequena, pobre, abandonada e com os índices sociais alarmantes.
Ficamos hospedados num grande galpão cujo teto era feito com a folha da palmeira buritis que emprestara o nome á vila.
Meu trabalho nesta localidade era instalar um grupo motor gerador de 10 MW. Este grupo havia sido doado pela Aliança Para o Progresso e se encontrava no local. Com o grupo gerador ligado, aqueles habitantes iriam conhecer luz elétrica.
Era bonito até de ver o equipamento, o grupo estava encaixotado com todo o material necessário para ser instalado, incluíam no material todas as ferramentas, instrumentos de ajuste, cimento, areia e brita que seria usada nas fundações e já estavam devidamente embalados nas proporções necessárias. Pode-se dizer que a única coisa que faltava para aquela gente conhecer a luz elétrica era um pouco do meu suor. Arregacei as magas.
O subsolo de Buritis era macio e fácil de cavar, mas para fazer os seis buracos onde seria derramado o concreto da fundação fui buscar ajuda na mão de obra local, foi ai que conheci o Pedro do Brasil Amargo e o Paulo do Brasil Sertão.
Conheci-os num boteco tomando um trago no final da tarde. Debrucei-me no balcão e sem me dirigir a ninguém falei alto.
-Preciso de dois para me ajudar, senão não consigo fazer o serviço.
-Pois um tá aqui mesmo.
Quem dissera aquilo fora um jovem, dono de uma voz grossa e de um corpo truncado e forte. Eu ia começar a falar quando do outro lado do salão ouvi:
-Aqui o dotor não vai falar duas vezes. O outro sou eu.
O Outro era um homem de cabelos brancos, mas com o aspecto de pessoa acostumada ao trabalho pesado. Convidei-os a beber comigo para nos conhecer melhor. Depois de umas duas horas de conversa eu já gostava dos dois. Falei para eles do meu nome, mas nunca consegui que eles não me chamassem de dotor. Por outro lado, tive que acatar o nome pelo qual eram acostumados a atender naquele lugar. O Mais jovem era o Amargo e o mais velho o Sertão.
Como a luz ia embora com a tardinha, nos retiramos cedo do boteco e marcamos para começar a trabalhar no outro dia bem cedo.
Amargo e Sertão pareciam serem feitos de aço. Seus braços fortes cavaram os seis buracos e os uniram com uma valeta, cortaram as taboas fazendo formas, colocaram a ferragem e as puseram dentro das valetas. Depois, viraram o cimento com areia, brita e água do rio enchendo as formas de concreto. Tudo isso num dia. Era curioso ver e ouvir os dois trabalhando, o riso não os abandonava nunca. Apesar do lugar pequeno que era Buritis, os dois eram cheios de novidades para contar um para o outro. Falavam da parteira que estava ficando pouca para atender a vila. Falavam de um amigo comum que fora mordido por cobra e estava com a perna preta. Acho que quando um começava a contar algo o outro fingia não saber do enredo e prestava toda a atenção para que o assunto se desenrolasse. Um era o entretenimento do outro.
Foi no final da tarde, quando Amargo alisava o serviço com a pá de pedreiro que o riso parou. Sem nenhuma expressão de alegria Sertão disse.
-Alguém devia matar o barqueiro. Ele ainda tem uma menina, eu a conheci na venda quando ele veio fazer um rancho. E esta menina esta no tempo de venda como ele diz, o nome dela é Beloni.
Achei aquele assunto estranho, mas resolvi não questionar, parecia ser algo muito ruim que aborrecia muito á Amargo e Sertão. Teríamos de esperar uma semana para que o concreto curasse e suportasse o peso do grupo gerador, só então recomeçaria a trabalhar de novo. Tive uma idéia:
-O Rio Urucuiá fica perto daqui, o que vocês acham de irmos fazer uma pescaria amanhã? Os dois pareciam que estavam esperando o convite, concordaram imediatamente e combinamos sair ás sete da manhã.
Seguimos por uma trilha com o Amargo e o Sertão sempre conversando e rindo. Muitas vezes eu entrava no clima deles e trocava risadas coletivas. De repente, numa curva da trilha os dois ficaram mudos. Uma cara com expressão feroz se desenhou nos rostos amigos. Estancamos o passo e foi Sertão quem falou.
-Aquela é a casa do barqueiro. O homem que precisa ser matado.
-Mas por quê?
-Porque ele vende as filhas para os garimpeiros que as prostituem ou as matam na beira do Urucuiá depois de se servirem das coitadas. Já encontramos o corpo de duas filhas dele.
-A tristeza deles passou para dentro de mim e no meu rosto também se desenhou a ferocidade.
-Vou lá.
-O dotor tem certeza? Pode ser incomodação.
-Não vou me incomodar. Passei uma capoeira pulei por cima de duas valas, estiquei as pernas num prado e cheguei à frente do casebre do barqueiro. Antes que a porta se abrisse e um sujeito de péssima aparência aparecesse ainda vi na praia uma balsa e duas canoas de aluguel.
-Ta querendo alguma coisa? A voz saíra de uma boca sem dentes num rosto coberto por uma barba suja.
-Me disseram que aqui tem menina para vender!
-O barqueiro me olhou como se estivesse me avaliando e depois de algum tempo falou:
-São quinhentos cruzeiros e não aceito reclamação.
-Posso ver a menina?
-Faz diferença? O barqueiro me dirigiu um olhar malicioso e continuou: Tem coisa melhor por aqui?
-Muito bem, vou pagar. Retirei do bolso a quantia e estendi para o barqueiro, Este pegou o dinheiro, contou lentamente e gritou sem virar a cabeça.
- Beloni vem cá.
Da porta saiu uma menina de uns onze anos de cabelos sujos e compridos. Veio caminhando até perto do barqueiro e parou de cabeça baixa.
-Este homem aqui agora é teu dono, vai com ele. Dito isso virou as costas e entrou na velha casa. Enquanto a porta ainda estava aberta tive a impressão de ouvir um choro de mulher lá dentro, a porta bateu e eu fiquei frente a frente com a menina que me olhava como se estivesse olhando para a Morte.
-Como é teu nome?
-Beloni.
-Beloni de que?
-Só.
-Muitas vezes o melhor caminho é aquele que não conseguimos enxergar. Falei isso para ela e fiquei pensando se ela me entendia. Beloni que não tinha sobrenome permaneceu em silencio, dei alguns passos e estendi a mão para ela. Lentamente amenina foi erguendo o braço e me deu a mão. Começamos a caminhar em direção aos meus amigos.
Quando Beloni viu o Amargo e o Sertão virou-se para traz em direção ao casebre com um pedido de socorro no olhar, mas a porta e as janelas fechadas pareciam terem virado as costa na vida para a menina.
Na beira do rio ficamos os quatro olhando as águas correrem. Ninguém falou ou cogitou na pescaria. Sertão com uma voz profunda olhou para mim e disse: Vamos voltar. Não era um convite nem uma ardem, era a vontade de todos dita em voz alta. Tomamos o rumo do acampamento.
No caminho de volta começamos a brincar com a menina que se mantinha muito quieta. Foi amargo quem começou.
-Conheço duas arvores que macaco não sobe. Qual é perguntei.
-Aquela que não nasceu e a que tem espinho.
Os três caímos na risada, mas Beloni séria só nos olhava. Foi a vês do Sertão.
-Conheço uma arvore que nasce para baixo. Qual é perguntei.
-É aquela que nasce do outro lado da terra.
Três risadas e um silêncio.
Era a minha vez de tentar distrair a Beloni. Parei no final do arvoredo onde uma clareira se espalhava até a vila Buritis. Ajoelhei do lado da menina e com ar sério disse para ela:
Estas vendo ali no meio do nosso caminho uma árvore de folhas coloridas?
Beloni sacudiu a cabeça num sim.
Ali no meio, haviam três árvores. Uma jacarandá branca, uma jacarandá rosa e aquela jacarandá de espinho. A jacarandá branca foi cortada e transformada numa casa onde mora hoje uma família muito feliz. A jacarandá rosa foi cortada e transformada em móveis para uma outra casa. Aquela jacarandá de espinho vai ser arrancada inteirinha com todo o carinho e plantada no pátio de outra casa onde nas tardes quentes de sol ela abrigará com carinho a família na sua sombra. Não houve risos, mas a minha historia inventada, fez com que a Beloni falasse pela primeira vez.
-Meu pai não gosta de arvores. Eu não disse nada, mas reconhecia a dor dentro da menina. Amargo para descontrai saiu-se com essa
-Aqui nesta vila todos têm um pai e muitas mães em cada casa.
- Explica isso para mim disse o Sertão.
-Bem, todos têm a mãe que gerou, mas temos também em casa a maesena, a maedolate, maedagua, maedrugada.
Finalmente quase na chegada quatro risos no ar anunciavam nossa presença para os colegas que sentados em torno de uma grande mesa dentro do galpão se preparavam para o jantar.
Acho que a Beloni tocou no coração de todos os estudantes. Primeiro pela historia que eu contara, de como uma pescaria tinha se transformado num resgate. Segundo porque a Beloni tinha um jeito meigo nos gestos que substituíam mil palavras, era como se ela falasse com o corpo. Seus negros olhos fitavam com tanta forca que pareciam encantar. Seus maneirismos eram muito peculiar, trejeitos e gestos com o auxilio de poucas palavras se transformavam em perguntas ou resposta. Beloni tinha um encanto de fada e se notava mais quando ela ria. Seu riso era tão lindo que qualquer um ria junto mesmo sem saber o motivo da risada. Beloni começou a ser amada por todos os alunos aventureiros do Projeto Rondon daquele acampamento.
As estudantes adotaram a Beloni, penteavam seu cabelo crespo mantendo o comprimento. Vestiam a menina com vestidos coloridos. Calçaram a Beloni com sapato de um pequeno salto que deu um porte maior de mocinha. Lembrei da brincadeira do Amargo quando disse que em Buritis todos tinham muitas mães.
Os dias foram passando. Eu e meus companheiros colocamos o grupo gerador sobre os parafusos que haviam ficado de espera no concreto, montei o quadro de comando elétrico, puxamos a fiação até o galpão onde instalamos tomadas e lâmpadas.
Trabalhávamos sem pressa e atentos a tudo o que acontecia na vila. De longe víamos o trabalho dos outros colegas dentro do galpão e lá dentro a Beloni sempre envolta com alguém. No final da tarde invariavelmente íamos para o boteco. Do pequeno prédio onde montamos o grupo gerador até o Boteco, tínhamos que atravessar um grande pátio de terra vermelha e todos os dias isso era feito na mira dos olhos da Beloni que corria para a porta do galpão e em pé ficava nos olhando como se assistisse a um desfile. Muitas vezes abanávamos para ela, coisa que ela nunca correspondia, mas até o ultimo dia que lá estivemos o ritual foi o mesmo. Acho mesmo e não sei por que, nunca mais conversei com a menina Beloni.
O dia da volta se aproximou, nosso projeto estava chegando ao fim. Os alunos agrônomos estavam exultantes com os conhecimentos que havia trocado com os colonos de lá, tinham ensinado técnicas de plantio e aprendido a fazer previsões do tempo olhando para as flores. Os alunos da saúde muito tinham curado doença e extraído dentes, mas em troca receberam o conhecimento de uma farmácia de ervas silvestres incrível. Os alunos da Assistência Social melhoraram relacionamentos familiares, abrandaram brigas entre irmãos e organizaram um clube de idosos. Em contra partida coletaram material para um doutorado sobre o homem do sertão, mas principalmente compreenderam que a doçura humana pode existir mesmo no meio da maior pobreza. Mais tarde, eu também teria a minha grande lição.
O grupo gerador foi ligado numa noite e iluminou para sempre o pátio da praça de Buritis. Eu tinha ensinado para eles o que era a energia elétrica, e aprendido com o Amargo e com o Sertão a trabalhar com alegria.
De uma forma estranha o Brasil havia entrado em nós e feito trocas que em minha opinião havia sido nós os doutores quem saíra ganhando.
O ônibus parado na praça com o motor ligado esperava pelo nosso embarque. Uma pequena multidão de amigos cercava os viajantes que trocavam abraços beijos e recomendações nas despedidas. Da porta do ônibus em pé no segundo degrau Beloni me olhava, ela iria com nós para Curitiba, o pessoal da Assistência Social havia conseguido licença para levar a menina.
Sobre a terra vermelha, formando um triangulo humano eu e meus amigos banhados por um olhar de menina íamos nos despedir para sempre. Foi Amargo quem começou.
-Meu pai sempre me disse que só os outros poderiam me fazer menos amargo, dependeria de mim. Por isso eu me ofereci no boteco para ajudar o dotor. Valeu a pena.
-A única coisa que tu tens de amargo é o nome, tu adoças tudo aquilo que tocas, deves ter muitos amigos. Obrigado pelo apoio e por me ensinares afazer do riso a melhor ferramenta de trabalho. Voltei o olhar para o Sertão para falar, mas foi ele quem tomou a palavra.
-Os animais da mata me ensinaram que solidão não existe. Achei o dotor muito sozinho no balcão do boteco por isso me ofereci também. Valeu à pena.
-Ter passado esses dias na tua companhia foi como estar conectado com o todo este povo. Obrigado por me ensinar a olhar a vida.
Com dois passos cada um, achegamos a distancia de um abraço prolongado e carinhoso, depois, lentamente rumei para o ônibus e sentei no fundo perto da janela. O ônibus fez um leve movimento para frente e da rua eu ouvi o Sertão falar.
-Tem duas coisas que o dotor não compreendeu.
-Interessadíssimo me debrucei na janela e fiquei olhando para eles á espera da revelação que viria.
-Primeiro, disse o Amargo, assim como vocês fizeram planos para nós, eu o Sertão fizemos planos para vocês. Desde que soubemos que vocês viriam, planejamos levar um de vocês a pescar no Urucuiá bem nas margens do barqueiro. Que bom que era o Dotor que estava no boteco naquela tardinha.
Eu estava na janela com o olhar esbugalhado quando o Sertão gritou para mim já de longe.
-A segunda coisa, é que nem todo o Sertão tem Amargo, eu tenho.
Sentei no banco porque a poeira que o ônibus levantava não me deixava ver ou ouvir mais nada para traz. Disse para mim mesmo: Safados, são pai e filho. Nunca mais encontrei o Amargo e o Sertão, mas eles viveram para sempre no meu coração.

Ж


Dizem que às vezes a gente faz um plano e Deus faz outro. Por sorte passei num concurso no CNPQ (conselho nacional de pesquisas químicas) este concurso me dava uma bolsa de estudos na minha cidade natal em Porto Alegre, fui para lá.
Na década de setenta era difícil e caro comunicar-se a distância, mas mesmo assim mantive correspondência e contatos telefônicos com ex-colegas. Soube que a Beloni fora adotada como filha por uma família e estava se alfabetizando numa escola pública. Os contatos foram se esmiuçando, mas oito anos depois ainda fiquei sabendo que a Beloni havia terminado o primeiro grau. Então a ponte caiu e eu nunca mais soube nenhuma notícia. O Projeto Rondon foi extinto e toda aquela gente desapareceu no vazio do tempo.
Eu me formei e arrumei emprego numa empresa de telefonia. Se pudéssemos converter nosso tempo numa árvore, poderíamos assistir o seu crescimento, o meu tempo teria um tronco muito grosso, pois a seiva da vida me alimentara por mais de sessenta anos. Meus cabelos já estavam na cor da última estação, e eu havia crescido muito na minha especialidade.
A pouco tempo atrás, atendendo a um convite de uma faculdade, fui para um evento onde iria proferir uma palestra para alunos formandos de engenharia. Lá estariam também outros profissionais apresentando temas selecionados.
No saguão na frente do anfiteatro, pessoas se reuniam antes do horário conversando alto e trocando idéias sobre o evento. Foi quando eu percebi que uma senhora tinha os olhos fixos em mim. Fiz uma menção de cumprimento com a cabeça e ela nem piscou, apenas me olhava. Resolvi ignorá-la.
Minha palestra versava sobre o relacionamento do engenheiro com o mundo em sua volta, dizia eu na palestra:
-As leis físicas que sustentam os fenômenos que nós compreendemos, estão organizadas no baú dos nossos conhecimentos em modelos que apesar de não existirem, comportam-se exatamente como o fenômeno. Damos explicações racionais para a femenologia que nos cerca. Nossos artifícios de pensamento assim como a matemática e a lógica satisfazem tão bem o fenômeno que dizemos que o compreendemos. Porem, isso tudo se passa só no nosso mundo racional. Muitas vezes as nossas emoções não acompanham a compreensão, sentimos diferente do que compreendemos.
Na segunda fileira da frente, vi a senhora que continuava me olhando como se eu fosse as Cataratas de Iguaçú. Continuei.
-Nossos sentidos herdaram a bagagem genética do passado, o convívio com o fantástico nos acompanha desde a nossa pré-história. Hoje quando estamos em frente a um fenômeno que compreendemos suas causas, não conseguimos nos livrar da sensação de maravilha. Um navio de aço, com três mil pessoas á bordo, boiando serenamente nas águas de um porto, traz para quem está no cais, um desconforto de sentimento. Sabemos desde Arquimedes que o peso do volume de água deslocado pelo navio exige que o navio bóie. Compreendemos isso, sabemos calcular, pesar e medir. O que não sabemos ainda é sentir a liberdade da verdade física do fenômeno. O navio de aço boiando nos desconcerta.
Nisso o braço da senhora do olhar penetrante levantou-se no ar como se quisesse me dar a mão, mas queria apenas fazer um aparte. Quando o fez, notei seu jeito meigo e encantador de falar.
-Dotor, o senhor está nos dizendo que os nossos sentimentos podem não ter raiz na razão ou que a nossa razão independe do que sentimos?
-Não, penso que estes nossos dois hemisférios são dentro de nós como o Norte e o Sul de um imã. Um não existe sem o outro. Porem, nós engenheiros estamos imerso no forte campo de um pólo. Estou dizendo aqui que nunca, nem por um instante na profissão que vocês exercerão, devem aceitar as coisas racionais como a única resposta. Outros caminhos sempre existirão.

-Obrigado professor.
Por educação ou por apreço, quando terminei a palestra fui muito aplaudido. Fui sentar na cadeira da mesa onde deveria ouvir o próximo palestrante. Com o microfone na mão, o dirigente do evento anunciava a personalidade que falaria.
-Temos o prazer agora de convidar a professora coordenadora do curso de Assistência Social desta Universidade para proferir sua palestra “Os Caminhos da Vida”.
Enquanto o apresentador lia o extenso currículo de especialização da palestrante, a senhora do olhar profundo e gestos meigos, levantou-se graciosamente e começou a dirigir-se para frente da platéia. Chegando lá, o apresentador falou:
Agora com vocês a Dra. Beloni Jacarandá de Espinhos.
Beloni agradeceu as palmas, passou a mão delicadamente do cabelo que caia na testa e começou assim:
-Muitas vezes o melhor caminho é aquele que não conseguimos enxergar. Dito isso olhou com seu olhar mais doce para mim na platéia e sem que ninguém entendesse porque fez seu discurso de uma só palavra:
-Obrigado.



FIM

sexta-feira, 10 de junho de 2011

LENÇOL DIGITAL COLORIDO

LENÇOL DIGITAL COLORIDO


         A dinâmica mais comum numa cidade grande durante um feriadão é fugir da rotina e gozar a natureza onde for possível. Tempos atrás, com a intenção do descanso semanal, dirigi-me por uma estrada do Rio Grande do Sul, rumo á um sítio que possuo no município de Águas Claras. Este local parece mágico, pois as cores do terreno variam com o sol e com a chuva  como se alguém que as pitasse adorasse lograr o olhar como fazem os pintores que exploram os findi da palheta colorida.
Não estava dirigindo, sentado na janela do carona procurava aspirar o ar adocicado pela relva do campo enquanto os meus pensamentos fluíam na reconstituição do curso de antenas que havia ministrado no dia anterior.
Convencer pessoas não é nada fácil, mesmo que a evidencia esteja escancarada. Para convencer é necessário estabelecer mudanças, para mudar é necessário dor, e com esta ninguém é tolerante, daí a dificuldade de impor a mudança mesmo dentro de uma sala e aula, pior ainda quando ela é novidade ou fantástica.
Tenho ensinado nos cursos que ministro, a construção do Lençol Digital numa LAN wireless administrada por um provedor de internet e tenho apresentado de diversas maneiras seus benefícios e suas vantagens. Ao longo das minhas aulas já ensinei e expliquei diversas vezes como se constrói um Lençol Digital. Apesar de ser um nome novo, o conceito de Lençol digital é antigo. Seu propósito é o de propiciar qualidades iguais para usuários diferentes, ou seja, um cliente que esteja recebendo um sinal de rádio de muito longe, deve ter a mesma qualidade que outro cliente que esteja recebendo o mesmo sinal de muito perto, nem mais, nem menos.
Basicamente, um lençol digital estabelece a condição de igualdade, ou seja: Ou todos estão funcionando perfeitamente bem ou todos não estão funcionando.
No entanto, mesmo com demonstrações e provas, o conhecimento se instala muito lentamente no aluno.  Acho que para convencer, vou ter de contar o que eu queria nunca ter contado, pois aconteceu também lentamente.
         Muitas pessoas que não participaram do meu curso, pensam que o lençol digital é um petroglifo meu. Que é um construto hipotético tão pouco razoável quanto aos conceitos atribuídos aos desenhos nas pedras deixados pelos antigos povos nas cavernas. Não é não, embora os antigos contassem com inspirações não bem aceitas hoje em dia por antropólogos e arqueólogos modernos, eles estavam dizendo com seus desenhos que nada está isolado, nem mesmo as diferentes raças dos seres vivos, quanto mais alguns radinhos numa LAN wireless. Os desenhos nas pedras dos antigos é de interpretação fatal, ou eles estavam todos certos ou todos errados.
         Num antigamente não tão antigo a religião proibia abrir o corpo de uma pessoa para fazer uma intervenção cirúrgica, ofenderia a Deus tal ação. Era considerada uma profanação no corpo que tinha sido feito a imagem do todo poderoso. Naquela época, na LAN do conhecimento estavam todos errados.
         A necessidade e a curiosidade foram maiores que a fé e o homem lentamente e literalmente mergulhou seus dedos, instrumentos e sondas para dentro dos corpos doentes. Com esse grande passo, conseguiu aumentar a quantidade e a qualidade de vida da humanidade, pois descobriu que o protocolo de funcionamento era igual em todos os seres vivos. Uma pessoa doente poderia adoecer outras pessoas, assim como um radinho no meio de uma LAN pode estragar outros tantos dentro da mesma LAN wireless. Na linha do tempo da nossa civilização, mesmo que dolorosamente, a mudança na medicina se impôs e todos ficaram mais saudáveis.
                   Admitir uma LAN wireless com um Lençol Digital ofende a quem? Se o conceito do Lençol Digital está errado, não existe nada que o sustente, mas se está certo? Por que não fazer como os antigos profanadores que dissecaram os cadáveres e estabeleceram o certo acima do dogma? Onde está a curiosidade?
                   Os anteneiros modernos necessitam se instrumentar para aprofundar-se nas entranhas do espectro de freqüência que trabalham, para ali, fazerem as cirurgias necessárias como o aborto da interferência, o transplante do ruído ou o implante de uma maior velocidade de processamento. Para isso, assim como os antigos, basta ter coragem de aprender a interpretar o ponteirinho de um instrumento de medidas. Claro que Deus se regozijaria com esta atitude.
         Um surrealismo muitas vezes é o que existe de mais real, por isso vou contar o que até agora foi um grande segredo:
         Aconteceu que após tudo ser acomodado no chalé da minha casa de campo e o planeta ter girado o suficiente para  exibir o bordado magnífico que as estrelas faziam no firmamento noturno, fui tomar um mate sentado na varanda. Foi então que vi uma bola colorida caindo lentamente, sem nenhum barulho atrás de uma coxilha. Tão perto que o meu olhar cansado nada perdeu no movimento.
         Levantei da cadeira de balanço e cuidadosamente, desci os três degraus de madeira rumando para o local onde um brilho rosado adornava o horizonte. O que seria aquilo? Se não houve pressa de pousar, por certo eu não precisaria me apressar também para chegar lá. Com passos cuidadosos e com a mão cingindo um cajado que servia para manter o equilíbrio que a idade rouba, venci a lomba chegando ao topo do monte onde fiquei estaqueado. Lá em baixo da ribanceira pairando sobre um pequeno lago estava uma forma geométrica formada por seis faces parabólicas.
         Da parábola superior do cubo, um feixe de luz rosado descia do céu. Pensei comigo mesmo: o feixe de luz tem ângulo de irradiação invertido bem ao contrário do que deveria ser se estivesse irradiando. Aquele matiz do vermelho vinha de onde mora o infinito. De onde estaria vindo? Estaria trafegando dados no rosa?
         Em baixo do cubo parabólico uma luz azulada mergulhava nas águas do lago. Pensei em seguida que todas as águas do planeta terra estão interligadas, se o rosa pudesse chegar dos confins do espaço, até onde viajaria o azul? Os dados do rosa poderia se transformar em dados azuis?
         Do lado direito do cubo parabólico, um feixe verde banhava as folhas do arvoredo de um capão distante. As árvores são incontestavelmente as melhores antenas receptoras que existem, são capazes de absorver qualquer freqüência exceto a cor verde que as banhavam. Qual seria o motivo? Estaria alguma árvore no planeta que formam a grande LAN verde da flora, desconectada daquele feixe verde? E os dados?
         Da esquerda do cubo parabólico um feixe de luz marrom apontava para uma montanha distante onde havia uma grande extração de minério. Nosso planeta é rico em minérios e todos se combinam formando misturas diversas. Os minerais se ligam entre si seguindo proporções corretas, assim como as proporções que devem ser guardadas entre os rádios clientes de uma LAN wireless. Se dados houvesse no feixe verde, o cubo parabólico funcionava como sendo um roteador.
         Bem na minha frente, o cubo parabólico parecia estar apontado para mim. Foi então que assustadoramente um feixe de luz branca começou a vir em minha direção.
         A luz branca se propagava vagarosamente, parecia vencer a distancia tão lentamente quanto uma pena caindo no ar. Parecia estar pedindo licença ao vento para passar. Quando chegou a um metro de mim parou.
         Meu coração estava disparado, eu estava mergulhado no manto negro da noite com uma luz intensa na minha frente que relutava em me iluminar. Dei dois passos para frente e me iluminei no seu feixe.
         Não sai do lugar, mas estava em todos os lugares da terra, eu via e sentia todos os seres humanos, ninguém estava vivo, ninguém estava morto, era como se todos fossem duas formas diferentes, como se fossem duas LANs de dois lençóis digitais que funcionavam em canais diferentes, vida e morte. Ninguém era melhor que ninguém, em todos havia dor, prazer, medo, saudades, e um profundo sentimento de solidão. Fantasticamente todos estavam conectados entre si pelo desejo deles por elas e delas por eles.
         De repente as luzes apagaram, o cubo parabólico subiu verticalmente em direção ás estrelas tão rápido quanto os pensamentos humanos. Fiquei sozinho em cima da coxilha com a minha solidão a noite estrelada e o perfume do campo.
         Voltei para o chalé com passos largos, sentei na minha cadeira de balanço e fiquei cismando com o ocorrido. Então hoje resolvi contar a vocês que pertencem a minha LAN, esse fato nunca antes comentado por mim. Se não acreditarem não faz mal, eu mesmo às vezes penso que foi um sonho criado pelas minhas dores, prazer, medo, saudades e solidão. Alguém já disse que tem certas verdades que não se deve dizer para não se passar por um mentiroso inocente.
         No entanto, quando estou num curso ensinando o Lençol Digital, lembro daquela noite e do cubo parabólico. Penso então que tudo que é harmônico e correto se relaciona como se fosse um lençol, assim como a terra a flora, a fauna os minerais e nós seres humanos, vivos ou mortos. Ninguém melhor que ninguém, nada melhor que nada, todos com direito a tudo, sem desperdício nenhum.
       Naquela noite, no final da madrugada antes de ser derrotado pelo sono ainda lancei um último olhar para o firmamento onde as estrelas parecia ser o maior lençol de todos criados neste nosso universo, pelo simples fato de nenhum astro estar em condição privilegiada. A harmonia de fora verteu para dentro de mim e o sono me trouxe um descanso sem dor.
         No dia seguinte tomei a decisão de nunca contar esta história para ninguém, afinal existem verdades que são ouvidas e aceitas de formas diferentes por ouvintes diferente, assim como as cores fendi, quem as olha nunca tem certeza se é cinza, marrom ou areia, cada vê como quer ver.
         Meu sítio de cor fendi fica em Águas Claras, num chalé pequeno onde eu vi  pousar lentamente um cubo parabólico com cinco feixes de core. Não vi a sesta cor, aquela que deveria sair por detrás do cubo. Quem sabe fosse o preto e na noite escura não percebi? Quem sabe neste preto que é a ausência de todas as cores estivesse a tolerância para compreensão de um novo fantástico? Uma grande idéia pode dividir dois povos assim como dois povos podem se unirem através de uma grande idéia. Não sei a resposta, mas acho que de alguma forma se outras vidas existem fora do planeta azul, estas vidas vivem na harmonia de um grande Lençol colorido.


F I M

GOIAJU

GOIAJÚ

            Tem gente  que pode não acreditar. Mas tenho certeza que alguns poucos vão ficar intrigados e para não contrariar ficarão calados. Estes são os meus alvos. Miro nos sonhadores, nos que não tem fé porque adotou a dúvida como solução quando se encontram frente a frente com o desconhecido e que alimentam dentro de si sonhos de liberdade. Miro os inconformados, os céticos, os irônicos, os sarcásticos, os debochados, os de espírito inquieto. Miro os diferentes, aqueles que marcham fora do pelotão.
            Conheci um anteneiro que transformou uma árvore em antena.
            Pronto, contei o segredo que guardava a tanto tempo, não agüentei mais afogar a verdade no poço do esquecimento. Quebro o isolamento da verdade com boas intenções, não espero abalar séculos de poeiras depositados sobre conceitos ditos naturais, não espero que acreditem apenas nestas linhas, tirem a prova da verdade. Lá vai:
            Uma vez estava eu no meu escritório quando ouvi um alvoroço entre os funcionários. Um grupo em frente à janela discutia se abriam a porta lá em baixo para a pessoa que pedia para entrar. Quando fui perguntar de quem se tratava, a pergunta se desfez. O visitante era alguem incomum. Seu tamanho era maior que o de duas pessoas juntas. Tinha uma cor avermelhada e olhava fixo para o chão, mesmo assim, quando passava por uma porta, inclinava-se levemente para não bater a grande cabeça no umbral da porta. Mesmo inseguro, deixei que entrasse. Tive que oferecer um banco de madeira para ele sentar pois não cabia entre as guardas da cadeira de escritório. Não era um homem gordo, era um homem grande. Sentado na frente da minha esa me disse com uma voz rouca, forte e melodiosa.
                -Meu filho tem muita imaginação e quer uma antena para internet, não sei bem o que é isso, sou um mateiro e só entendo de mato, mas tenho aqui este papelzinho que ele me deu. Dito isso me mostrou um catálogo antigo que eu usara no passado para fazer propaganda das antenas que eu fabrico.
            Entramos em entendimento, ele morava com a família no sertão do Maranhão, nas bordas da floresta amazônica.
            -O único jeito é por satélite. Disse para o enorme sertanejo. Ele não demonstrou ter entendido ou não, estava tratando comigo apenas de interesses que não era dele.     O sertanejo usava um casaco de couro marrom e quando cruzou
os braços pude ver a franja nas mangas. Perguntou sussintamente:
            -Quanto custa?
            Descruzou os braços e do bolso interno tirou uma carteira. Contou as notas até o valor que eu dissera e depositou o dinheiro em cima da mesa.
            -Pois então ta. Quando é que o senhor vai lá?
            Quinze dias depois, após uma viagem de oito horas de avião e mais oito horas de carro, entrei na soleira da casa do sertanejo. Foi quando conheci o Acácio filho do sertanejo. Era um rapazola de uns vinte anos, magro de olhos e cabelos negros, movia-se com a languidez de um felino, com gestos suaves e precisos, tinha uma estatura baixa mas era muito bem proporcionado, era um bonito rapaz. Perto do pai o Acácio era muito pequeno. A aparencia física diferente  do pai e do filho me chamou aatnção, a natureza possui infnitos caminhos.
            Na mesa de jantar forrada de comida e frutas o Acácio me olhava como se tivesse olhando para o mapa das minas do Rei Salomão. Dirigi-lhe as perguntas.
            -Então Acácio como vai o colégio.
            -Vai não, nunca fui lá.
            -Mas para navegar na internet tu precisas saber ler.
             -Sei sim. Aprendi olhando os jornais velhos que chegavam aqui e na televisão, tem uma antena aqui na fazenda que fica virada para o céu, acho que o que vem do céu e da terra é tudo o que eu sei.
              Achei bonita a ótica com que Acácio via seu uiverso, ele era uma pessoa com grandes tradições no trato da terra e sabia enchergar alem desta. Argumentei com o rapaz.
            -Mas é necessário noção de computação para navegar.
            -Eu olho o senhor fazendo e aprendo.
            Não gostei da resposta do Acácio, uma sensação de oportunismos me assediou os sentidos. Os custos finais daquela compra eram enormes, se não fosse aproveitada teria sido dinheiro jogado fora comigo.
            No outro dia, comecei a instalação. Era como se eu tivesse duas sombras, uma era minha, criada pela obstrução do sol e a outra pelo Acácio que do meu lado, sem perguntar nada, não perdia um movimento. Instalei a antena, coloquei o conector no cabo coaxial, configurei o rádio e fiz um stub para conseguir o máximo de acoplamento entre o radio e a antena.   Foi ai que o Acácio falou:
            -Para que esse fio dependurado?

            Expliquei que o rádio precisava aceitar a antena como ela é e aquele fio era um modificador da natureza física da antena, assim os dois, rádio e antena ficavam como que casados. Aquele fio fazia isso.
            -Engraçado, aqui a gente faz isso entre as plantas. A gente casa laranja com limão, pêssego com ameixa, uva branca com uva preta. Há muito tempo venho tentando criar a goiajú.
            -O que é goiajú Acácio?
            -Ora casamento de goiaba com caju.
            Com esta eu levantei e fui fazer outra coisa.
            Quando fomos almoçar, a instalação estava concluída. Gastei toda a tarde explicando para o Acácio os comandos básicos do teclado e onde ele poderia buscar informações na web. Percebi que para o Acácio nada era explicado duas vezes, muitas vezes ele antecipava a pergunta á resposta. Na saída passei a ele meu msn para ajudá-lo quando necessário.
            Quando sai de lá sai com uma dúvida respondida, o que a natureza havia dado para o pai do Acácio  em tamanho, havia legado ao filho em inteligência.
            O tempo passou, as estações trocaram a cor da natureza duas vezes, a soja por duas vezes tivera sua safra pungente no sul e o Acácio nunca entrou em contato comigo. Muitas vezes eu tentei anexá-lo e não era possível. Certo dia aconteceu. Estava eu teclando com um amigo quando a telinha apareceu pedindo para eu aceitar o chat. Era o Acácio.
            -Olá, quanto tempo, como vais?
            -Agora vou bem, finalmente encontrei uma arvore para casar com o rádio
            -O que queres dizer com isso?
                  -Bem quando o senhor saiu daqui eu comecei a me afeiçoar com os botõezinhos quadrados, já estava esperto quando uma tropa de búfalo passou pelo terreno e arrancou a antena. Destruiu todo o trovejão, nunca mais funcionou.
            -Mas e agora? Quem arrumou para ti?
            -Eu mesmo. Não tinha mais a antena, então eu procurei uma árvore. Comecei com o ipê, depois fui para o eucalipto, o cedro, o pinheiro, o jabuticabeiro, abacateiro, araçá, cajueiro, carvalho, embaúba, figueira, imbúia, jatobá, nogueira, oliveira, jequetibá. Claro que eu não me esqueci do stub, como o stub tem que ser do mesmo material eu usava o cipó da árvore. Um dia funcionou. Sabe com que árvore? Com a goiajú. O difícil foi encontrar o lugar certo para colocar os pregos para ligar o cabo, todo mundo aqui na região achava que eu tava ficando louco, eu sempre pensava que tinha pensado o mesmo do senhor. Se o senhor fez eu tinha que fazer também. Demorei porque a árvore ainda era pequeninha e não podia casar.
              -Mas Acácio isso é impossível.
            -É não!
            -Preciso ver isso de perto.
          -Como o senhor mesmo disse, são oito horas por cima e oito horas por baixo e ainda pode comer os goiajú.
            Nesse momento a minha conexão caiu. Não me saia da cabeça o “é não” do Acácio. Seria a imaginação mais importante que o conhecimento? Não, eu não vou ir até lá, o Acácio deve estar se intoxicando com este tal de goiajú. Imaginem se eu contasse isso para alguem, que tem uma guaiajueira acoplada com um rádio e irradiando 2,4GHz. Quem ia acreditar? No entanto se alguém quiser prosear com o Acácio, é só me pedir o msn dele.
            Uma vez alguém disse: O homem deve evitar dizer verdades que pareçam mentiras para não passar por um mentiroso inocente.
            Outra coisa, se você quiser ver para tirar a prova, vá lá. São oito horas por cima e oito horas por baixo.


FIM

quinta-feira, 9 de junho de 2011

O SEGUNDO CLIC

O SEGUNDO CLIC


            Se me perguntassem o que eu mais sei fazer dentro da minha profissão de engenheiro eletrônico, por certo eu responderia que é fazer medidas. Medir o quanto um valor está perto ou longe da sua especificação é a minha maior habilidade. Sistemas de telecomunicação para serem eficientes necessitam funcionar dentro de uma estreita faixa de tolerância eu meço os desvios que não podem ser tolerados.
Sou convicto de que os princípios físicos na natureza, não podem ser compreendidos sem que se façam medições. Acreditem fazer medidas é quase uma dependência química, a gente se torna viciado em medir. Como para todo o viciado existe sua overdose, para mim também ouve.
 Primeiro as medidas elam apenas elétricas, mas com o passar do tempo comecei a medir constantes antigas que fossem os pilares da nossa cultura. Remedi  velocidade da luz, remedir a aceleração da gravidade, remedir a impedância do espaço livre e até remedir o ruído de fundo do cosmo.
Claro que meço somente as constantes físicas, mas sou desses caras que acredita que a física é a ciência que mede a realidade. Assim como as minhas medições são as ferramentas para a compreensão do mundo físico, meus instrumentos são as ferramentas para a medição.
Certo dia transbordei o pote , estava eu medindo a diferença de potencial elétrico existente entre minhas pernas quando uma luz acendeu-se no poço escuro onde se esconde minhas melhores idéias.
Seria essa diferença de potencial variável com o humor de cada pessoa?
Esta pergunta parecia absurda, não existem medidas para medir o mundo lúdico, subjetivo. Os sensores são a profundidade dos olhares, os sorrisos e a linguagem do corpo ou gestos inconfundíveis visível a olho nu, mesmo que a distância. Mas se fosse possível? A ciência não é a arte de transformar o impossível em possível?
Passei alguns dias montando um medidor que comparasse a constante elétrica da outra pessoa com a minha. Pensei em usar o princípio da comparação, Duas quantidades iguais a uma terceira, são iguais entre si, Isso posto, bastava eu sair comparando outras pessoas comigo que iria facilmente estabelecer um padrão. O lúdico haveria de obedecer alguma regra lógica.
O artefato ficou pronto, instalei sob o casaco e sai para a rua. Ficara apenas com um pequeno problema, eu teria que tocar nas pessoas.
A intensidade de tensão do humor eu já poderia medir, mas como eu iria saber se estaria certa a medida? A resposta nasceu quase com a pergunta, bastava eu conhecer as minhas cobaias. Sou de uma família muito pequena e resolvi evitar os poucos parentes disponíveis, minha pesquisa seria feita no boteco.
Perto onde eu moro, existe um bar onde se reúnem á noite, sistematicamente, um grupo muito heterogêneo de pessoas, fui para lá violar alguns deles, afinal gente da noite está sempre à disposição.
                   Cheguei suavemente como uma noite que adormece serena nos cabelos morenos do povo brasileiro e fui direto para perto do primeiro.
                   O sujeito ela um grande fuzarqueiro, a própria simpatia personalizada, pois estava sempre fazendo piadas oportunas. Era uma pessoa de estatura baixa e inteligência alta, sabia melhor que todos adaptar uma conversa qualquer num tema humorístico, isso fazia os que ouviam sentir-se parte da piada. Foi depois de um desses momentos engraçados que num gesto aparentemente normal, toquei na mão do fuzarca para cumprimentá-lo pelo  oportunismo do humor. Clic medi o Fuzarca. Havia capturado a primeira medida, não olhei o valor para não chamar a atenção, mas ficou registrado na memória do aparelho que eu já batizara de humorímetro. O aparelho sempre emitia um “clic” quando fazia um registro.
O segundo era um sujeito de pavio curto, desses que adoram não levar desaforo para casa, mas como todo mundo tinha um defeito, ele era pescador e naturalmente sempre exagerava no tamanho do pescado. Esperei ele contar a sua última pescaria e quando ele gesticulou um peixe enorme, toquei nas mãos do pescador exagerado e fechei o intervalo para diminuir o peixe. Neste momento,  Clic ele estava aprisionado no meu humorímetro.  
O terceiro era um sujeito acostumado a somar, coisa da profissão, era um desses caras que costumam se exibir de ser capaz de fazer um pingo no centro de um círculo e de olhos fechados.  Esperei a conta do bar chegar e arredei a mão do contador para pagar o valor sozinho. Clic, capturei o certinho.
Numa mesa num canto, três sujeitos falavam ao mesmo tempo um assunto empolgante. Não cliquei eles, como poderia? Ao mesmo tempo não dá.
Parti para as mulheres.
A dona do boteco é daquelas que todo mundo quer tocar, mas que ninguém consegue. Como fazer para ela achar normal um toque carinhoso meu? O clic aconteceu quando ela me entregou o copo, me fazendo de distraído peguei o copo por cima da mão da felina. Imediatamente deram-se dois clic, um foi do humorímetro que fez seu registro...
A segunda era uma bailarina que ainda morava na cidade pelo fato de nunca um sheik árabe a ter visto, senão hoje ela estaria dançando a dança do ventre em alguma barraca no deserto do Saara. Como fazer? Eu precisava passar a mão nela. Lembrei de um truque de mágica que eu uso nas aulas quando quero prender a atenção do aluno. Perguntei para a senhora exaltação se ela acreditava no alem. Ela disse imediatamente que sim, havia caído no truque. Levantei a cabeça e olhei para o teto onde havia um quadro impressionista e disse: - Me dá a tua mão e pensa naquele quadro. Eu havia escondido na manga um desenho da via lacta, quando ela percebeu haver uma foto entre as nossas palmas da mão duas coisas aconteceram, a estupefação dela e dois clic.
 A terceira era do tipo que nunca assobiava no vento. Tinha um atavismo sensual que seduzia até muçulmano fundamentalista. Como fazer para passar a mão? Não foi tão difícil, ela é artista plástica e eu pedi que ela desenhasse uma flor na minha mão. Bons momentos aqueles. Os clic? Dois é claro....
Sai do boteco pensando, fora muito mais fácil passar a mão nos homens, por que será?
De volta no meu laboratório, peguei o humorímetro e através de um cabo USB passei para o lep-top onde um programa de foto shopping esperava pela numeração comparativa. Apareceu uma figura surrealista que sugeria para alguns um homem excitado e para outros algo nebuloso. Havia nos dados fornecidos ao computador algum tipo de colisão entre a lógica e o inusitado algo que a máquina não tinha memória suficiente para computar, que interferia, poluía sem deixar de ser glamouroso.
            Não entendi, acho que o programa deu páu, deve estar biruta.
  Que resultado mais ridículo. Pensei que eu iria aparecer de forma heróica ou nobre ou aventureira. Acho que o que estragou foi o segundo clic. Vou ter que remodelar o meu artefato. Isso vai ser fácil, o difícil será passar a mão nelas de
novo.
A natureza é para nós a aparência da realidade que com certeza é mais louca que a ciência. Seria a natureza lúdica? O nosso conhecimento de Física está sempre se remodelando. Como medir a realidade que a natureza esconde? Não sei, quem sabe os medidores que fazem esta medida não possam ser fabricados pelo homem e existam naturalmente dentro de nos, mesmo sem os ponteiros, mas que clicam sempre  a presença do medo  da fome do instinto sexual e de tantos outros.
Olhando para o desenho gerado pelo meu programa o meu artefato foi batizado com o nome errado, mas se não serviu para uma demonstração científica, serviu para dar uma pista nada lúdica, nada física,  tão insinuante para a realidade quanto a natureza. Esta pista foi o segundo clic.


Gilvan