sábado, 30 de julho de 2011

O GUARDIÃO DA RESERVA

Nos entroncamentos, existe muito mais chance de se somarem as coincidências que nos fazem perceber que tudo se move comprometidamente entre si.
Tudo está completamente envolvido. Nada está sozinho ou é independente. O que existe, é uma grande teia com infinitos caminhos para chegar a um lugar determinado. Uma molécula do oceano atlântico necessita da outra molécula do oceano pacífico para que o nível dos dois oceanos se mantenham. Nada falta nada sobra, tudo se relaciona. Animais plantas rios e terras são responsáveis hoje por aquilo que será um dia o nosso futuro e que pessoas podem dedicar a sua vida na preservação daquilo que hoje tem pouca chance de ser o futuro amanhã.
A Prefeitura municipal de Erechim fica num entroncamento e tem uma fachada que parece risonha, pois sua construção é arredondada com uma grande escadaria dentuça na frente que sugere alegria. Sobre a escada, antes de entrar no grande arco da porta, existe um patamar, como se fosse uma grande língua. O prédio sugere um semblante alegre.
Foi ali que aconteceu. Foi ali que mais uma vez, senti um dos elos da grande teia. Não um elo qualquer, mas aquele que num certo ponto ajuda a prender a teia para que esta se estenda por todo o espaço-tempo.
Tudo começara um dia antes, quando por necessidade, fui comprar uns comprimidos na farmácia. Meus filhos que acham que tudo sabem me levaram a um cardiologista para uma consulta e este médico me condenou a engolir três bolinhas da cor de leite, todos os dias.
Obedeço ao sabido doutor com os comprimidos, não por achar que preciso, mas por gostar do rapaz que a uns poucos vinte anos atrás, quando estávamos na estação das frutas, pulava a cerca da do meu quintal para colher mangas madura da árvore frondosa que ficava bem no meio do pátio. Nunca disse para ele que eu sempre o vira pela fresta da janela fechada. Gostava do jeitão do garoto. Ele não se importava se estava sendo vigiado ou não. Pulava a cerca e ficava um tempão olhando para cima da árvore.
Caminhava em volta do tronco, parava andava mais um pouco, avaliava, girava, escolhia, pensava e por fim se decidia. Como um macaco, subia a grande árvore até o alvo e colhia a fruta escolhida. Sempre duas nunca em todos aqueles anos que ele invadiu minha árvore, ele colheu mais do que duas frutas de cada vez. Eu achava justo, ele não desperdiçava.
A árvore ainda está lá. Provavelmente vai produzir mangas por muito mais tempo que eu e este doutorzinho vamos viver. Ele não sobe mais na árvore, mas como se houvesse um compromisso moral, nunca me cobra a consulta, mesmo quando eu insisto em pagar. Nestes momentos ele sempre me diz:
-O pagamento é o sabor que o passado tem.
Rio e nunca me dou por entendido.
Após a última consulta, parti para a farmácia para comprar o remédio.
O boticário, vindo lá do fundo entre as prateleiras, ficou com o pacotinho na mão sem me entregar enquanto cumprimentava um amigo que passava pela frente da farmácia.
-Bom dia Reinaldo como tem passado?
Virei e olhei a pessoa na calçada para ver se também não conhecia. Nas cidades do nosso interior, o cumprimento é muito apreciado. Não conhecia. Reinaldo era um homem de uns oitenta e poucos anos, altos e magros, Sob a aba do chapéu na cabeça, pude perceber um rosto de traços retos com um queixo quadrado e bem definido, sem uma única linha suave no rosto. Reinaldo levou a mão ao chapéu e sem erguê-lo fez numa saudação. Não disse nada e continuou seu caminho.
Nos poucos segundos que vi o rosto de Reinaldo, senti algo estranho, não sei se no olhar ou no jeito antigo, mas a sensação que tive, foi de ver um homem feroz.
-Amigo seu? Perguntei ao boticário que também era um ancião.
-Sim, conheço-o toda a minha vida, nossos pais já eram amigos. Da infância até hoje muitas poucas vezes ouvi a voz do Reinaldo. Até porque ele é quase surdo. Quando éramos rapazotes, saíamos em grupo conversando e ele nos acompanhava sem dizer nada. Se perguntássemos algo diretamente, ele apontava para a orelha e sugeria que não ouvira. No entanto se qualquer um de nós dissesse algo muito inadequado, lá estavam os olhos secos do Reinaldo encarando o dono da frase com uma censura no olhar. Mas mesmo assim, era um companheiro. Acho que o trabalho dele interferiu mal para ele perante a natureza.
-Que afirmação estranha. Como pode o trabalho de um homem interferir mal para si perante a natureza ?
-Pensei que você soubesse aqui na cidade todo mundo sabe, Reinaldo era guarda florestal nas terras das reservas do Alto Uruguai, seu trabalho era de guardar a floresta com a força da lei.
-Parece-me um bonito trabalho. Cuidar de uma floresta para que seja preservada, deve ser algo gratificante.
Para a floresta talvez, para o Reinaldo acho que não. Foi muito trágico. Ele só conseguiu proteger com matança.
Minha curiosidade se aguçou, a farmácia estava vazia e a conversa tinha tomado um rumo muito curioso. O boticário era meu conhecido há muito tempo, sua mão ficou aquecida pela água quente quando encheu a cuia do chimarrão, quem sabe aquele calor amigo soltasse sua língua numa história de tantos anos atrás? Resolvi explorar o momento, até porque o próximo amargo seria meu.
-Explica mais. Que matança é essa?
O boticário trocou de perna, passou a cuia para mim e escolhendo as palavras disse:
-Era uma época difícil aquela dos anos vinte quando o jovem Reinaldo corria este planalto cumprindo o seu dever. O povo ainda não estava bem acostumado a obedecer a leis do presidente Getúlio que proibia derrubar uma árvore da reserva e dizer para alguém que ele não podia derrubar um pinheiro para fazer lenha ou para construir uma casa, era quase como se estivessem ofendendo o sujeito. Cabia ao Reinaldo cuidar para que ninguém desrespeitasse a lei na reserva. Uma noite, estávamos num grupo de amigos reunidos e perguntamos para o Reinaldo:
-Reinaldo, se tu és surdo, como é que tu consegues achar alguém cortando uma árvore no meio deste matão sem fim?
Reinaldo que quase nunca falava, naquele dia resolveu soltar a língua, talvez porque o peso dos fatos pudesse aliviá-lo contando. Então, narrou para nós esta história aterradora.
Eu ouço o machado cravando no tronco. Quando desço do cavalo, encosto o ouvido numa araucária, sinto a batida do corte. Sei direitinho de onde está vindo. Cautelosamente sigo a direção entre a árvore que me informa pelo som a árvore que vai morrer pela mão que empunha o machado.
O grupo ficou quieto, pois já ouvira na cidade comentários do desfecho. Mas Reinaldo botando as coisas às claras continuou.
-Amarro meu crioulo pelas rédeas numa moita, pego o ferro e me esgueiro bem de vagarzinho até uns cem metros de distância onde estão os lenhadores, eles estão quase sempre em dois. Sempre espero uns cinco minutos, pode ser que eles desistam de matar a árvore. Começo a atirar. No primeiro sempre atiro na testa, acho que é um lugar mais difícil de acertar, é mais uma chance que estou dando a ele. No segundo miro no coração. Muita gente não morre com um tiro no coração. No terceiro se ele houver, nunca atiro. Deixo ele fugir. Reinaldo nos falou isso, sem flutuar o tom da voz. Sem remorsos. Sem paixão. Sem alma. Acho que foi o dia que ele mais falou perto de nós. Continuou:
- Depois, busco o cavalo, coloco os corpos em cima, amarro bem os pés e as mãos por debaixo da barriga do animal para os corpos não caírem e volto á pé puxando as rédeas, até a feitoria para entregar os corpos.
-Alguma vez alguém ficou só ferido? Perguntei.
-Não nunca.
Pelas vidraças, enxerguei o velho Reinaldo caminhando já longe, com os passos longos e calmos. Fiquei olhando em silêncio, tentando imaginar se hoje por debaixo daqueles cabelos brancos, existia algum remorso. Foi quando ouvi o boticário dizer.
-Este teu silêncio, é o silencio da incompreensão. Também o tenho comigo, e há muitos anos. Sabes? O Reinaldo é vegetariano, nunca comeu carne, nas suas invernadas pela reserva, cheia de animais que dariam um excelente ensopado ou um ótimo assado, o Reinaldo nunca atirou em nenhum animal. Comeu sempre frutas, sementes, raízes e arroz que levava nos alforjes.
Fiquei quieto pensando num guarda florestal andando a cavalo num dia de chuva a procura de um tronco onde iria encostar o seu ouvido para ouvir o corte de machado. Refiz-me desta imagem e falei:
-Obrigado pelo atendimento e pela história, cada um tem a sua, mas realmente esta que me contaste não é nada comum. Num gesto de despedida, entreguei a cuia do mate para o boticário.
-Passe bem, se precisar de outra coisa, já sabe o caminho, o mate e o coração estão sempre quentes para ti.
O sol estava prazeroso, com ele me aquecendo a costa, fui descendo a ladeira da avenida no caminho de casa dos meus parentes onde eu estava passando alguns dias em vista.
Á noite fui dormir cedo, depois de haver jantado um frango ao molho de madeira regado por um excelente vinho colonial.
Durante a noite, sonhei que estava em um lugar onde não conseguíamos respirar. Eu e todas as pessoas íamos morrer se não conseguíssemos subir uma grande serra que continha no seu cume uma floresta de arvores. Porem, todos tínhamos que passar por um desfiladeiro estreito, um por um. Neste desfiladeiro, um cavalheiro de longos cabelos brancos, armado com uma lança comprida, montado num cavalo negro, guardava a passagem. Olhava para os andantes e com um raio de fogo pulverizava o infeliz. Outros ele olhava e sem nada dizer deixava seguir o seu rumo serra á cima. Quando chegou a minha vez de enfrentar o olhar do guardião, eu já estava suando na cama. Acordei-me com o desconforto do pesadelo e fui tomar um ar na varanda da casa.
O céu estava cheio de estrelas, pensei no arvoredo que ainda estavam lá na reserva. Quantas árvores hoje cresceram e devem ser enormes porque alguém morreu. Que troca fatídica. Vida humana por vida vegetal. Quem seria o maior culpado pela troca? Quem era mais responsável? A Feitoria ou o Reinaldo?
O boticário tinha dito: que o trabalho do Reinaldo interferiu mal para ele perante a natureza. Seria isso uma condenação moral do amigo de infância? Ou seria a descrição de um efeito colateral da ação do trabalho do velho guarda?
Duas horas depois abraçado no travesseiro me embrenhei na noite escura do sono sem sonhos.
O dia que se seguiu, era uma quarta feira. Começou com uma bela manhã ensolarada. Era um desses dias que a gente agradece estar vivo e morar neste planeta. Como a estação era a primavera, o sol orquestrava as cores nas flores dos jardins no quintal das casas, multiplicando suas cores e degrades.
Brilho? Isso não faltava nem no sótão das casas mais antigas nas colônias, onde os raios solares vazavam as frestas dos telhados e choviam luz para dentro. Sai de casa lépido e fui para o meu encontro.
A avenida principal da cidade desemboca na prefeitura, junto com outras ruas. Aquele lugar alem de ser o centro de poder da cidade, é também um centro de rota. Ocorreu-me, que um dia nos fundos daquela prefeitura, existira um departamento chamado Feitoria onde muitos destinos findaram.
Comecei a subir os degraus da dentadura de pedra pelo lado direito. Lá em cima sobre a língua azulejada estava o escrivão da secretaria de obras que se chamava Análio e que me esperava. Eu queria que a prefeitura me indicasse um agrimensor para me ajudar a medir uns campos e dias atrás solicitara ao Análio esta ajuda. Daí este encontro.
Pelo lado esquerdo percebi que subia outra pessoa que acenava alegre para o Análio.
-Dois amigos pontuais. Comentou o Análio.
Foi então que percebi que a outra pessoa, não podia ser outra, senão o agrimensor. E era.
O Análio nos convidou a entrar, mas o agrimensor que se chamava Baltazar argumentou.
-Este sol é um presente que não deve sofrer desfeita, quem sabe conversamos um pouco aqui fora?
A proposta foi bem aceita e começamos a nos entender. O assunto era preço, horas de trabalho, deslocamento, diária etc...
De repente o agrimensor ficou calado, com os seus olhos brilhantes no rosto onde se desenhou o arco triste do poente em suas feições.
-Eu moro aqui em Erechim, por causa daquele homem. E com um jogo de queixo indicou um velho magro de rosto quadrado e passos largos e lentos que passava lá em baixo na calçada. Bem naquela hora, bem naquele lugar, bem na nossa frente.
-O Reinaldo? Perguntei.
-Tu o conheces?
-Não. Mas acho que como todo mundo aqui, conheço a histórias que contam dele. Teu pai era lenhador?
-Não. Meu pai era agricultor. Nossa família é do município de Paim Filho, que fica á uns 70 Km daqui de Erechim é uma cidade pequena, ás margens do rio Inhandava, meu pai era um pequeno agricultor naquela região.
Aconteceu que um dia, estava ele na barranca do rio quando viu um cachorro atravessando a nado as águas calmas do rio. Num ato impensado, meu pai para experimentar a espingarda que ganhara de presente de um irmão, arma velha sem mira, restos da revolução de 23 que andou por lá, atirou no cachorro. Foi um tiro com a bala guiada pela mão do destino. De uma grande distância, quase impossível de se acertar a bala foi se alojar bem no crânio do peludinho que morreu sem dar um ganido. Porem, o tiro foi visto por algumas pessoas que estavam pertos na hora. Foi um visinho do meu pai, que picando um fumo na mão se aproximou e disse sem levantar os olhos.
-Compadre, foi um tiro raro, de gente boa no gatilho, mas o alvo não podia ser pior. Aquele cusco era o cachorro guia do Velho Reinaldo. E então, levantou a cabeça e disse muitas outras coisas com o olhar. Meu pai entendeu tudo e nada falou. Daquele instante em diante, começava a sua vida a mudar mais que as águas daquele rio.
O agrimensor ficou quieto, olhando para a ponta dos sapatos, talvez se lembrando de coisas vividas no passado.
-Agora termina a história disse o Análio que mantivera total silencio até ali.
-Pois é. Passou-se uma semana, numa noite de muita chuva, estávamos reunidos todos na cozinha da nossa casa, quando bateram na porta. Fui eu quem se levantou para atender e abrir a porta. Do lado de fora, dentro de uma capa preta e sob um chapéu que pingava água, ouvi uma voz que me disse.
-Chama o teu pai.
Não foi preciso chamar. Meu pai estava ali olhando para aquele homem que eu não conhecia e se desculpando de todas as formas. Prometeu indenizar, prometeu dinheiro, disse que se arrependera demais do ocorrido, que não era intenção dele acertar o cachorro, que tinha sido um momento de burrice da sua vida. Por fim parou de falar e ficou olhando para aquele homem alto e estranho, como que esperando um desfecho pior.
O homem abriu a capa e apareceu o cabo de um revolver e um facão. Colocou uma mão na coronha e a outra no cabo do três listas. Meu pai deu um passo para traz e me empurrou para o lado da porta. Estufou o peito e esperou pelo castigo.
Alguns segundos passaram, minha família inteira entendia que a vida e a morte estavam ali na porta decidindo algo. Se um tiro tivesse acertado o meu pai naquele momento, teria sido um tiro disparado á uma semana atrás e que finalmente vinha encontrar o alvo.
Não houve o tiro. Ouvi os passos longos que se afastavam depois de proferir estas palavras:
-Segunda feira nesta mesma hora se tu ainda morares nesta cidade, tu vais morrer como o cão.
Em vinte e quatro horas, meu pai vendeu a casa, arrumou a mudança e partimos de carroça de Paim Filho para Erechim, desde então, vivemos aqui.
Ficamos os três quietos olhando o velho magro e alto com passos largos e lentos se afastar até sumir coberto pelas copas das árvores que arborizavam toda a cidade nas calçadas, depois nos despedimos quase que em silencio e comecei junto com o agrimensor a descer a escadaria. Quando estávamos na metade ouvimos o Análio falar lá de cima:
-As reserva do Alto Uruguai é o único lugar neste Brasil onde a mata é forrada de araucárias, tem árvores lá de mais de duzentos anos. Durante muitos e muitos anos nunca tivemos um caso de invasão de terras naquela região. Dizem que é protegida por espíritos luminosos que vagam á noite na escuridão. Mas claro isso é só história de povo ignorante.
Para pasmo meu ouvi o Baltazar dizer essas palavras:
-São as pessoas normais que sempre nos desapontam, os loucos não nos assustam, pois são previsíveis.
Terminamos de descer os últimos degraus e após a despedida tomamos rumos diferentes, as direções tomadas por mim pelo Análio e pelo Baltazar eram separadas por ângulos iguais, nossos destinos separados tinham a forma de uma estrela que irradia sua luz por três pontas. Ali naquele entroncamento da vida, num pequeno momento do tempo foi possível perceber a cumplicidade entre o passado e o presente e que nunca estamos totalmente sozinhos, mesmo dentro de uma mata densa.
Antes de entrar em casa ainda pensei no esperto doutor comedor de mangas: Tudo depende do que escolhemos para nós. A hora mais importante é a da escolha, ali temos opções de errar ou acertar, o resto é o desfecho que sempre deixa como pagamento o sabor que o passado tem.
O Baltazar tinha razão o seu pai não soube escolher o alvo, optou pela manga errada.
Por coisas da vida, me mudei de Erechim para outra cidade e nunca mais voltei lá, sei que a cidade cresceu e que no seu norte nas reservas do Alto Uruguai o vento balança as copas das araucárias gigantes.

FIM

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