quinta-feira, 30 de junho de 2011

O TIO ARI

O TIO ARI


Acreditamos facilmente naquilo que não perturba nossos sentimentos, somos herdeiros de um senso de verdade sensitivo. No entanto, precisamos do equilíbrio entre o que sentimos e o que racionalmente demonstramos, mas é o que não entendemos o grande desafio.
Uma história absurda, as vezes, contada de um determinado jeito, pode ser um invasor que penetre na nossa ignorância e ajude a transformar cegueira em visão, engano em acerto, milagre em fenômeno e tanto mais, visto que existimos num universo enorme e o imaginamos na escuridão. Aqui no planeta azul, a verdade da realidade é compreensível e soberana, perturbe ou não perturbe os nossos sentimentos. Uma boa história pode nos ajudar a iluminar a sombra do estranho que habita nosso desconhecido, esta história quando for bem contada nos modifica. Foi o meu tio quem ascendeu a lâmpada do meu quarto mais escuro. Vou contar a história.
O tio Ari era um parente que não era muito bem considerado por todos. Ninguém da família dava muita importância para ele. O tio Ari era apenas o marido da minha tia, e o pai dos meus primos. Nas suas conversas existia alguma coisa estranha como se estivesse sempre falando por alguém. Todos achavam que ele era um tolo, pois ele contava uma história inverídica com a convicção da verdade. Assim, ninguém acreditava nele porque o mentiroso carrega consigo o estigma do emocionalmente desequilibrado ninguém quer se identificar com ele.
Mas nem sempre foi assim. Seus pais eram donos de um frigorífico na cidade de Putinga e muitas vezes o tio Ari havia varado noites inteiras dirigindo um caminhão carregado para Porto Alegre. Era uma atividade difícil a de ser um caminhoneiro e de muita responsabilidade. Naquela época os veículos movidos a diesel eram lentos, fumarentos e de pouca confiabilidade mecânica. Ainda por cima as estradas não eram asfaltadas e o caminhão que não possuía direção hidráulica podia a qualquer imperícia tomar a direção do motorista.
O tio Ari nunca se acidentou. Em muitas madrugadas frias, sozinho no meio da estrada que era quase uma trilha o tio Ari havia trocado pneus, sangrado o óleo do motor, trocado mangueiras e reapertado o cordame da lona da carroceria que abriga a carga.
Estas bravatas aconteciam na década de cinqüenta quando o Rio Grande do Sul possuía ainda muito poucas estradas bem asfaltadas.
Contam os colegas de trabalho, que um dia, chegando de uma viagem o tio Ari estava diferente. Entrou com o caminhão erroneamente no pátio do frigorífico provocando uma colisão desnecessária com três outros caminhões estacionados. Quando entrou no escritório da firma que pertencia ao seu pai, ele contou o acontecido:
-Eu já tinha passado pela cidade de Encantado, e faltavam menos de trinta quilômetros para chegar aqui. Vocês sabem, neste trecho a estada é um tapete vermelho cortando o campo verde. A lua estava bem em cima do caminhão, clareando tanto que dava para ver o azul do céu. Foi quando eu vi pelo retrovisor uma luz da cor da lua me seguindo. A principio pensei que fosse outro veiculo, mas em seguida percebi que seu facho vinha das alturas, não podia ser um avião porque pulava por cima das curvas. Era uma nave espacial. Passou por sobre o caminhão quase batendo e desceu no campo. Travei o REO e fiquei olhando tremendo de medo. A nave brilhava como se fosse um cristal iluminado por dentro. Toda a natureza era vermelha verde e azul, o brilho da nave e da lua produzia matizes de cor dando á natureza em minha volta um ar de puro encantamento.
Como se tivesse recebido uma ordem, pulei para fora da boleia e caminhei até a cerca de arame. Uma porta se abriu na nave e uma rampa apareceu, descendo por ela uma porção de homenzinhos pequenos, de cor cinzas e de olhos grandes oblíquos, plantados numa cabeça enorme, lentamente desciam a rampa. Um deles começou a caminhar em minha direção e quanto mais perto chegava de mim, mais meu medo sumia, uma paz enorme invadiu meu peito. Veio até a cerca e esticou o braço. Passei pelos arames e caminhei na direção dele como se fosse uma criança chamada para ganhar um presente. Lembro que eu caminhei com ele de mãos dadas em direção a luz, depois disso não me lembro de mais nada, me acordei debruçado sobre o volante do caminhão hoje de manhã e o encanto sumira.
Este relato do tio Ari feito para mais de vinte pessoas numa cidade pequena do interior foi a sua condenação fatal. Meu tio transformou-se quase que instantaneamente no deboche de todos que moravam naquela cidadezinha, passaram a falar assim:
-Lá vai o amigo dos marcianos.
-O Ari tem amizade na Lua com os lunáticos.
-Coitado perdeu o juízo.
-Lá vai o caminhoneiro que passeia de mãos dadas com os homenzinhos do espaço.
Daquele dia em diante ninguém mais acreditou em nada que o tio Ari falava, e sempre que havia uma oportunidade num grupo de amigos alguém pedia para o tio Ari contar a história dos homenzinhos cinza com o propósito exclusivo de fazer piadas e dar risadas.
Ninguém, mas ninguém mesmo se deu ao trabalho de procurar por alguma evidência na história, mesmo quando confirmaram que o tio Ari havia saído de Porto Alegre numa segunda feira e chegado em Putinga na sexta feira. Ninguém perguntou por onde ele e o caminhão andaram por todo aquele tempo. Uma viagem daquelas não levava mais que dez horas quando o caminhão não estragava. Por aquele caminho muitos outros caminhões do frigorífico viajavam diariamente, seria impossível não terem encontrado o caminhão se tivesse estragado na estrada.
Naquela época o tio Ari era recém casado com a irmã da minha mãe e para continuar casada, ela exigiu que saíssem de Putinga, pois não agüentava mais as pilheras que faziam com o marido. Vieram então morar em Porto Alegre bem perto da casa dos meus pais.
Quando criança, eu e meus primos ficávamos encantados com a historia do tio Ari, corríamos para perto dele e para nos diverti pedíamos assim:
-Conta, conta tio, Conta de novo como eram os homenzinhos.
O tio Ari olhava para nós e contava a história como se fosse pela primeira vez. Contava com emoção, com detalhes que nos fascinavam. Descrevia a nave, falava dos olhos grandes e amendoados e da pele macia, da expressão de bondade no rosto dos pequenos cinza. Todas as nossas perguntas eram respondidas com carinho e clareza.
-Eles eram maus?
-Não. Eles eram muito bons, só queriam o bem.
-Eles eram marcianos?
-Não. Também perguntei isso para eles e eles disseram que o planeta deles ficava no tempo a uma distância milhares de vezes mais longe do planeta que nós chamamos de Marte.
-Eles eram feios?
-Um silêncio pensativo e a resposta: Eram.
-Tu não tiveste medo?
-Eles não deixaram eu ter medo.
E assim por muitas tardes o tio Ari nos encantara com a sua história contada sempre com detalhes fascinantes e criativos, contada sempre de forma diferente. O enredo da história não mudava, mas a forma de contar eram sempre lindas e ricas de detalhes novos. Mas isso também ninguém notou.
Os anos foram passando, eu me tornei um técnico especializado em antenas. Dominei o conhecimento teórico de eletromagnetismo. Fiz curso de pós-graduação em telecomunicações e fui trabalhar com antenas.
Certa feita minha tia já velinha pediu para eu instalar uma antena de TV para ela. Peguei dois funcionários, todo o material e rumei para a casa do tio Ari. Ele estava deitado e não se levantou. Conversei com a minha tia na cozinha até que um técnico gritou lá da frente:
-Tá pronto.
Fui até a sala e conferi a qualidade da imagem nos canais de TV um por um. Primeiro analisei o pigmento, a convergência dinâmica. Tirei as imagens refletidas e conferi a diferença de amplitude entre o áudio e o vídeo que deve ser de 12dB.
Sentado num banquinho e com a tampa trazeira do televisor aberto tinha as ponteiras do osciloscópio na mão para regular a crominância. O olho humano é mais sensível á luz verde-amarelo que as luzes azul ou vermelha, mas eu sabia que esta natureza humana muda com a idade, eu tinha um problema que não era técnico, eu queria regular o colorido da TV para os olhos dos meus tios.
Numa regulagem padrão de crominância, atribui-se para as cores as seguintes proporções, 30% para o vermelho, 11% de azul e 59% de verde. Mas qual seria a percentagem perfeita para os meus tios?
Foi quando ouvi a voz do tio Ari atrás de mim:
-Aumenta o vermelho. Olá tio, que bom que o senhor está aqui. Acha que melhorou? Dito isso girei um trimpot na placa da TV e o vértice do triangulo das cores que eu via no osciloscópio moveu-se.
-Perfeito. Deixa assim, está como as cores da natureza á noite quando duas fontes de luz revelam a presença de tudo. Disse isso e se retirou para o pátio da casa.
Terminei de fechar a TV e dei os ajustes por findos. Depois fui até o pátio olhar a antena instalada sobre a casa. No pátio, com as mãos para trás e olhando para a antena, o tio Ari com os cabelos brancos embalados pela brisa do vento, olhava em silencio para a antena.
-Então tio, gostou do serviço?
Ele me olhou bem fundo nos olhos e disse:
-Gostei principalmente das três cores e do brilho. Já vi isso antes. Queres que eu te conte de novo?
-Não tio, eu adoraria, mas hoje estou muito apurado, só vim aqui para ver vocês. Estou indo para a praia. Meu tio sem importar-se com minhas palavras perguntou.
-Por que esta antena recebe as imagens da TV ?
-Ora tio foi feita para isso.
-Não é uma boa resposta.
-Bem tio, então é porque a emissora tem outra antena que está transmitindo para esta.
-Ha. Esta é uma boa resposta. Acreditar nisto é acreditar numa boa história colorida. Que bom que acreditam em ti. Dito isso rumou para dentro de casa e entrou no seu quarto fechando a porta.
Sai dali contrafeito. Não acreditava na resposta que eu havia dado para o tio Ari. Eu sabia que as equações que sustentam o fenômeno da propagação da onda eletromagnética são exatas, mas não respondem o “por que”. Na verdade a causa de uma onda eletromagnética se propagar é uma invenção não uma descoberta. O fenômeno nunca foi explicado satisfatoriamente. Outra coisa que me incomodava era sobre a história que o tio Ari sempre contara, com o passar dos anos fui ouvindo comentários jornalísticos sobre pessoas que disseram terem visto visitantes que vieram ao nosso planeta e as figuras descritas eram semelhantes com a descrição dada por meu tio a mais de cinqüenta anos atrás. Poderia...?
E aquela frase que o meu tio havia me dito antes de se retirar para o quarto? “Acreditar nisto é acreditar numa boa história colorida”. O tio Ari sempre fora desconcertante com suas palavras.
Despedi-me da minha tia e fui embora. Como no outro dia começava um feriadão, comecei a me organizar para um repouso de três dias, me dirigi para a casa. No outro dia, bem cedinho sai de viagem para o litoral norte de Santa Catarina. Iria descansar na praia e meditar sobre modulação.
Meu corpo corria na estrada para frente dentro do carro e os meus pensamentos corriam para dentro do poço das lembranças. E se fosse verdade? Se o tio Ari não tivesse mentido? Naquele tempo quando ele começou a contar a história dos homenzinhos este assunto era um absurdo, mas hoje. a existência de visitantes no nosso planeta é uma questão científica aceita por muitos cientistas de renome. Não se debocha mais desta possibilidade. Se a historia for verdadeira, em que solidão terrível eu e todos os outros condenamos o tio Ari. Quando eu voltar vou dizer para ele que eu acredito nele. A combinação das três cores com o brilho pode criar muitas variâncias de cores, estas variâncias se ordenadas numa combinação adequada podem obedecer a um protocolo que armazenem na ordem das cores uma mensagem. Isso é pura e simplesmente uma modulação. Quem sabe o tio Ari tenha sido o receptor destas mensagens e há tantos anos esteja nos dizendo algo. Sempre, mas sempre que ele contou sua historia, tinha extremo cuidado em descrever as cores de todo o cenário do acontecimento. Quem sabe neste tempo que eu vivo ainda seja prematuro para entender uma forma mais sofisticada de comunicação que seja baseada na permutação das cores?
A manhã correra ligeira, eu já estava quase chegando quando o meu telefone celular tocou. Era a minha tia.
-Oi tia, tudo bem?
-Não. Estou te ligando porque o Ari faleceu.
A tristeza da voz no telefone passou para o meu rosto, mas não parou. Invadiu meu inconsciente sem cores onde dorme o remorso.
-Como foi tia?
-Ele morreu inesperadamente, estava sentado na frente da TV e disse assim:
-Sem brilho não existe cores.
Depois simplesmente encostou a cabeça no encosto da poltrona e fechou os olhos cansados. Morreu como se sua vida houvesse simplesmente sido desligada. Vamos enterrar o Ari amanhã de manhã.
-Eu vou estar ai contigo tia.
Em pouco tempo cheguei à casa da praia, descarreguei o carro, me desvencilhei de algumas obrigações, pulei para o volante. Sabia que o mesmo tempo de vinda me separavam da volta. A estrada não parecia ser de retorno, pois os meus pensamentos seguiam numa ordem crescente de pensamentos.
Cheguei ao cemitério depois do velório, bem na hora do que haviam resolvido fazer o enterro, o caixão fechado estava sobre o túmulo só esperando a ordem para ser baixado na cova funda da última morada. Minha tia chegou perto de mim e disse: Ele sempre gostou muito de ti, queres dizer as últimas palavras? Aquele convite me pegou de surpresa, mas não levei nem um segundo para responder.
-Quero!
Com muito cuidado fui escolhendo as palavras que expressassem melhor tudo aquilo que eu nunca dissera antes:
Estamos aqui reunidos para nos despedir do tio Ari, somos todos ligados a ele por laços sanguíneos ou de amizade. Nem todos nós nos conhecemos, mas todos nós conhecemos a história do tio Ari. Quero agora na presença de todos vocês fazer o meu depoimento de despedida. Tio Ari eu acredito na sua história, desculpe não ter dito isso olhando nos seus olhos, mas a sua vida foi curta para que eu vencesse toda a estrada da compreensão. O senhor foi a fagulha que incendiou a minha imaginação. Com o senhor eu ampliei os meus limites ao olhar para o céu e não me sentir sozinho. Desde a minha infância o senhor foi um super-herói capaz de sustentar a sua verdade mesmo quando ninguém acreditava. Desculpe tio Ari por ter sido um dos seus carcereiros que o manteve na solidão daquele em quem ninguém acreditou. O senhor viveu a vida que poucos homens viveram, viveu a vida daqueles que são condenados a mudar a opinião de todos, que ajudam a iluminar o desconhecido. Pena tio Ari que eu não consegui entender a tempo que o senhor passou sessenta anos ensinando que o mundo que vivemos é muito maior do que percebemos e que só admitindo a sua vastidão de possibilidades é que podemos então começar a entender nossa realidade neste planeta.
Tio, desejo do fundo do coração que um dia eu também encontrasse os homenzinhos cinza de cabeça e olhos grandes, eu diria a eles que o senhor cumpriu a sua missão e que a semente que o senhor plantou irá germinar em nós que ouvimos tantas e tantas vezes a historinha que o senhor incansavelmente nos contou. Quem sabe tio Ari se alguém ainda não virá a provar a sua história. Descanse em paz meu tio e obrigado pela sua infinita paciência ao me contar a sua verdade sempre de maneira tão linda. O senhor sempre foi um caminhoneiro, no inicio sua carga pesada era inanimada, depois sua carga pesada passou a sermos nós. Sua jornada chegou ao fim e a sua viagem trouxe para nós a certeza de um mundo maior onde precisamos encontrar dentro de nós um brilho de luz para que encontremos as cores da beleza.
Do fundo do meu coração obrigado por me emocionar tantas vezes e finalmente tio, descanse em paz. Eu acredito no senhor.
Lentamente o caixão desceu para dentro da terra, para o único lugar aonde vamos que não existe sentimento, razão ou cor. Para o único lugar onde não há esperanças de nada. Para a morte eterna e escura. Todos os presentes estavam em silencio e de cabeça baixa.
Acreditar nisto é acreditar numa boa história colorida.


FIM

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