quarta-feira, 13 de julho de 2011

MACACHEIRA

MACACHEIRA

A selva amazônica durante a noite é invisível, pelo menos para os olhos humanos. Nenhum raio de luz se reflete na sua muralha preta. É como um buraco negro que aprisiona todos os raios de luz. Naquela escuridão, somente a nossa imaginação penetra, e mesmo assim contra a nossa vontade.
Uma torre de ferro de sessenta metros fora erguida numa clareira aberta pelo machado dos amazonenses que eram funcionários de uma mineradora em Pitinga, município do estado do Amazonas. Eu estava lá para fazer um enlace de 52Km em 2,4GHz. A grande empresa, uma das maiores exploradoras de cassiterita do mundo, havia me contratado para fazer o enlace e alimentar uma LAN em quinze prédios distribuídos dentro do complexo da mineração.
No meio da clareira, havia uma guarita de onde todas as luzes brotavam. Em volta da nossa caminhonete, estava eu e mais cinco pessoas. Mantínhamos a cabeça erguida para o topo da torre onde um técnico estava procurando o desejado sinal de rádio freqüência.
O Macacheira fora o nosso guia até ali e quebrando o silêncio falou assim:
-Não consigo entende o que este moço ta fazendo lá em cima.
Expliquei para o nativo, com uma linguagem simples a idéia de modulação, irradiação, transmissão, recepção, e sinal com informação. Lembrei a ele do rádio e da antena que havíamos instalado em outra torre igual horas mais cedo, e que agora estávamos tentando encontrar o sinal do lado de cá com este outro equipamento. Parei de falar e não ouvi nenhum sinal de compreensão. O guia ficara mudo e imóvel, assim como uma onça antes do bote certeiro.
Macacheira era um homem que nunca havia se afastado mais que cinqüenta quilômetros do local onde nascera. Fora a civilização que chegara até ele quando descobriram aquelas riquezas minerais na sua região. Inesperadamente a vós do nativo encheu o silencio da mata quando disse.
-Minha muié e minha fia fais isso também, só que elas uisa as flô e o vento. Uma coloca na flô o recado e o vento leva o perfume da flô que ela escoieu até a outra que cheira e entende o recado muito longe. Assim como oces.
Macacheira havia falado com voz baixa, calma e despretensiosa, mas aquilo que ele dissera, entrara nos nossos ouvidos como se fossem estrondos de um canhão.
Tive vontade de dizer de imediato que não acreditava, mas me lembrei que o Macacheira era muito arredio e por certo eu perderia a chance de explorar mais aquele assunto. Então muito cuidadosamente perguntei:
-E como elas fazem para colocar o recado na flor?
-Sei não. É coisa de muié da mata. Elas caminham no meio das flô com as mãos abertas, como se tivessem fazendo um achego nas flô, vão subindo e descendo a mão do coração e mexendo a boca sem fala. Quando o vento passa por ali em direção da outra, já leva com ele o recado. Falam coisa delas: Trais fruta, oia a onça, vem pra casa, vai chove. Estas coisas.
Se uma folha caísse no chão naquele momento, com certeza ouviríamos, de tão grande que foi o silêncio. As palavras do Macacheira ribombavam na minha cabeça, eu quase podia ser ouvido sem falar. O Macacheira era uma pessoa que só de olhar para ele, percebia-se imediatamente ser alguém que não apreciava o riso e o humor. O que ele falará, mesmo parecendo absurdo, saíra de dentro dele com a força da verdade.
O assunto não se alongou muito, quando as perguntas começaram a nascer, Macacheira levantou o chapéu de palha da cabeça num sinal de quem diz com licença e simplesmente se retirou de perto, embrenhou-se na escuridão e a poucos metros de nós, ficou completamente invisível aos nossos olhos curiosos.
O sinal apareceu. Trabalhamos mais meia hora para fazer o acoplamento correto entre a antena e o rádio. O técnico desceu da torre. Entramos na caminhonete e retornamos para a pousada. No outro dia tínhamos que embarcar num barco e descer o Rio Negro. Nosso assunto dentro da caminhonete, vocês podem imaginar qual foi.
Já era meio dia e eu estava sentado na popa da chalana e ainda tinham na cabeça as frases do sertanejo. A minha muié e a minha fia fais isso também.
A natureza ali fazia o seu show. Deliciosamente eu olhava o encontro das águas do Rio Negro com o Rio Solimões. Os primeiros quilômetros eu usara para saciar a satisfação de estar ali onde o preto do Negro ladeava o marrom do Solimões, imitando com o verde das matas uma bandeira listrada de três cores. Nos quilômetros seguintes mergulhei na incompreensão.
Por que aquelas águas não se misturavam? Por que se mantinham teimosamente separadas? Seus animais do habitats submersos também se comportariam assim? Conseguiriam se camuflar nas águas escuras do Negro assim como fizera o Macacheira na escuridão da mata? Era a segunda vez que eu percebia naquela região uma escuridão tão impenetrável.
A chalana navegava e os meus pensamentos voavam. Nos últimos quilômetros, eu era pura dúvida. As águas dos rios e a história do Macacheira me deslocavam do centro do meu mundo racional.
Se elas colocassem recados no perfume das flores, então elas modulavam. Isso é impossível!
Os dois rios finalmente miscigenavam. A cor e o nome mudavam. Lentamente começávamos a navegar pelas águas poderosas do Rio Amazonas. O maior volume de água doce do mundo. Bebedouro de uma fauna gigantesca, berço de riquezas, mistérios e beleza. Artéria principal do maior pulmão verde do planeta. Símbolo do poder natural de uma ordem soberana.
Já havíamos navegado alguns quilômetros pelo Amazonas quando me ocorreu que o compreensível e o incompreensível, assim como o negro e o marrom eram elementos essências na existência de tudo e de todos. Por certo na grande selva amazônica existem segredos incompreensíveis para os homens, mas não para todos. Pode ser que a mulher e a filha do Macacheira, seja a demonstração desta verdade que nos é tão difícil aceitar e que realmente consigam colocar recados nos perfumes das flores. Como? Não sei. Quem sabe se em certa noite sem lua, o preto do Negro e da mata, tenham sido o motivo para aquela gente olhar para dentro de si e encontrar luz no único lugar possível naquela escuridão. Alguém me disse uma vez que o coração é o lugar onde mora o impossível.
Nunca mais vi o encontro das águas, também nunca mais vi o Macacheira nem conheci sua família. Mas sei que nos lagos dos nossos pensamentos, funde-se o que chamamos de sabedoria, onde pessoas diferentes, com falas diferentes, com segredos diferentes, e com diferentes soluções para os mesmos problemas fazem telecomunicação.
O Amazonas desemboca no mar, mas nós seres humanos, desembocamos uns nos outros e no fundo da mais profunda escuridão existe luz. O resto é assim como a internet, só luzinha piscando.


FIM

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