quinta-feira, 18 de agosto de 2011

O PRIMEIRO ACOPLAMENTO



Meu avô era pedreiro, e ele sempre dizia que bastavam três ferramentas. A pá, o martelo e a régua, resto era só para ajudar, com essas três ferramentas ele construiria uma cidade.
Meu pai que ouvira o meu avo lembrava-se do passado com carinho enquanto planejava seu futuro.
Meu pai foi bancário e ele sempre dizia que bastavam três ferramentas, a caneta, a máquina de escrever e a máquina de somar, com estas três ferramentas, dava para dirigir um banco.
Eu que ouvira meu pai e lembrava-me do passado com carinho enquanto planejava o meu futuro.
O tempo continuava ligeiro na ampulheta que contava na terra seu giro em torno do sól.
Quando cresci, comecei a trabalhar sozinho numa oficina de eletrônica. Logo descobri que tudo dependia das antenas e que elas existiriam para sempre, então, comecei a estudar e instalar antenas.
Três ferramentas eram essenciais para o meu trabalho. Um medidor de sinal para saber qual a quantidade de sinal eu estava recebendo ou transmitindo na antena. Um medidor de onda estacionaria para eu saber se eu estava irradiando com máximo esplendor. Um analisador de espectro para eu saber se radiografar a alma da minha instalação e saber se algum intruso na ar não estava subtraindo do sinal principal contra o meu interesse. Claro, era necessário também o sol brilhando no céu, na escuridão nunca me atrevia a subir em torres..
Certa feita estava eu no interior, trabalhando no acoplamento de duas antenas direcionais de alto ganho utilizando rádios de cinqüenta wats de potência, bem no topo de uma torre de trinta metros de altura, quando um raio caiu na torre. Todo mundo sabe que com o tempo ruim não se sobe em torres, muito menos se instala antena. É morte certa. Mas, a necessidade e o trabalho às vezes têm um relacionamento complicado. Quando eu subi na torre a noite vinha pela mão do planeta, mas na ampulheta parecia que tinha tempo para apertar o último parafuso. Não sei como ela se esvaziou tão ligeira. Lembro que de repente tudo ficou desconexo e na minha confusão confundi por alguns instantes o dia e a noite.
A queda terminou no chão. Fiquei deitado na grama sem compreender como eu tinha caído lá de cima sem me pisar. Não havia caído um pingo de água do céu, tinha sido um raio sem chuva. Olhei para cima e não vi a antena, pior, não vi a torre. Fiquei em pé num pulo.
Eu estivera instalando aquela antena de repetidora de telefonia na rota de micro ondas da companhia telefônica, num morro chamado Cerro Paloma, no município de Livramento –RS. Este morro parece ter sido feito a mão. Apesar de ser muito alto, tem um chapadão plano no seu topo onde fica a guarita com os rádios dentro e a torre com as antenas em cima. Em volta do Cerro, serpenteia uma difícil estrada de acesso desde o sopé até o alto.
Não conseguia entender o que havia acontecido. Teria o raio arrancado a torre do seu lugar? Mas onde teria ido parar? Caminhei até a beira das escarpas de onde se via todo o vale. Puxei um ar fundo para dentro do peito como se quisesse engolir a noite, foi então que ouvi alguém falando do meu lado.
-De onde você veio?
Era um homem, de batina preta e colarinho branco. Era magro e alto, possuía uma testa larga e um rosto liso quase sem barba, tinha um ar de pessoa inteligente. Fui muito cauteloso.
-Eu estava ali, e apontei para onde estivera a torre sumida, estava trabalhando quando caiu o raio. O Sr. viu alguma coisa estranha? O Sr. é um padre?
-Vi. E não sou padre, sou irmão marista da ordem de São Francisco.
-Viu a torre sumir? Viu o raio?
-Não sei do que estas falando o que eu vi de estranho foi o vento minuano soprando forte e caindo em cima de nós sem nenhum aviso. Tive que segurar a máquina de falar para não voar aqui de cima. A propósito meu nome é Irmão Roberto e o seu? Dito isso me esticou a mão delicada com dedos finos.
Depois de nos apresentarmos, contei para o Irmão Roberto aquilo que havia me acontecido. Ele me olhou calmo por um longo tempo e começou a falar assim.
-O que o Sr. falou, para mim é um absurdo, antenas de alta freqüência não existem, de onde o Sr. tirou essas idéias? Eu estou aqui em cima do morro testando a minha máquina de transportar a voz. Quero ver se consigo enviar algumas palavras á vinte quilômetros, estou num projeto para a marinha brasileira. Estou tentando fazer com que a minha voz seja recebida lá na cidade de Livramento que fica em linha reta exatamente á vinte quilômetros. Possuo três ferramentas poderosas para fazer isso. Um tanque bobina/capacitor, uma bateria e uma antena dipolo.
-São sempre só três respondi para ele. Mas não deixei que ele perguntasse mais nada, continuei falando. Posso ver seu equipamento?
Caminhamos até o acampamento onde estavam outros três irmãos igualmente vestidos.
-Irmão Moura, quem é esta pessoa que lhe acompanha? Perguntou um deles enquanto enchia a cuia do chimarrão.
-Encontrei na beira da escarpa acho que estava delirando, disse ser um técnico de Telecom.. não sei o que.
Curioso, me aproximei de uma mesa, onde havia muitos fios e equipamentos elétricos. O irmão tinha como fonte de energia um balde cheio de ácido de onde saiam dois fios, dentro do balde pude reconhecer discos de chumbo e de cobre, sobrepostos alternadamente e isolados entre si. O tanque era descomunal, a bobina era sustentada no ar com fios de cordão e ligava-se á duas placas metálicas paralelas entre si. Estas placas quando uma girava, mudavam a superfície de inteiração entre elas, reconheci logo como um capacitor variável. Dois fios em paralelo iam até um dipolo de meia onda com mais ou menos dez metros de comprimento para cada lado. O microfone era um pedaço de taquara cheio de pó de carvão com uma membrana tapando a tampa. Do centro saia dois fios compridos que iam se ligar no tanque.
-Funciona? Perguntei.
-Funciona, mas não é constante. Não consigo entender por que. Ora funciona, ora não.
-Experimentaram melhorar o acoplamento?
-E como o Irmão faria isso? Perguntou o religioso que estava sentado olhando com curiosidade para mim.
-Simples, cortando estes dois fios aqui que ligam a antena com o tanque para que fiquem do tamanho certo, assim poderá haver uma melhor transferência de energia dão tanque de RF e a antena. E para provar o que eu tinha dito, pedi licença e cortei em pedaços pequenos um metro no comprimento dos fios.
Ao cortar senti pelo tato que era um fio antigo enrolado com fios com capa de algodão.
Era fácil perceber naquelas pessoas a admiração desenhada nos rostos e nas bocas entreabertas. Continuei a falar sobre impedância, onda refletida, soma vetorial e outras coisas. O Irmão Roberto ficou todo o tempo muito atento com as minhas palavras. Alguém chegou por traz e nos convidou.
-Vamos ceiar?
Comemos todos sentados em volta de um fogão improvisado que foi feito da raiz de uma árvore tombada. O silencio era profundo, os irmãos comiam lenta e silenciosamente. Um deles comentou que naquele lugar caiam muitos raios, ninguém retrucou. No final, com os pratos lavados, o Irmão Roberto chegou-se a mim e disse;
-Meu filho, a novena para nos é uma hora sagrada. Depois da novena, não podemos falar até as matinas. Teremos que continuar nossa conversa amanhã depois de terminarmos de rezar as matinas, logo depois vamos testar o teu acoplamento.
Dito isso, me entregou um pelego de ovelha e um cobertor, me mostrou uma pedra dizendo.
-As pedras guardam dentro o calor do sol que pelas horas do dia a aqueceram, na noite é bom dormir junto á elas. O calor flui para nós nos aquecendo carinhosamente. Eu ia falar, mas o irmão marista sem interromper-se continuou.
Recebamos o agora com carinho tudo o que o antes nos legou.
Alguma coisa bateu fundo em mim com aquelas últimas palavra do irmão Roberto, mas o sono me venceu. Dormi sobre o pelego encostado na pedra quente e sonhei que o tempo passando ou a terra girando faziam o ruído do calor da pedra sobre o solo passando para mim no pelego.
Planeta, tempo, ondas, tudo se relacionava, assim como as ferramentas da minha família. O sono começou a se infiltrar em mim, mas eu pensava ainda naquelas pessoas que ali estavam. O que houve com o intervalo do tempo entre eu e eles? O imperceptível embalo do planeta, armado do silencio profundo da noite e mais o calor reconfortante que vinha das pedras me venceu e finalmente dormi tão profundo quanto ficam as coisas que não compreendemos e nos tiram o sossego na vida.
-Acho que ele está bem, teve muita sorte não quebrou nenhum osso.
Com essa frase acordei debaixo da torre. Eu estava sendo socorrido pela minha queda, tinha ficado uma noite inteira ali e de manhã quando resolveram me buscar haviam me encontrado ainda desmaiado.
Passado os comentários gerais sobre a minha queda e a sorte de não ter me pisado, contei para eles o meu sonho. Todos riram e debocharam do nome do Irmão. Um amigo até ironizou dizendo:
-Devia ser o Landell de Moura.
Quando estava caminhando em direção á caminhonete para descer o morro, algo começou a me coçar na canela. Abaixei-me para averiguar e encontrei preso na bainha da calça um pedaço de fio antigo enrolado em fios de algodão.
Livramento teria conseguido ouvir sem variações a voz do Irmão Roberto depois das matinas?
Nunca vou ter essas respostas, a terra onde nasce a nossa sabedoria, o sol de onde vem todas a energia existirão para sempre no firmamento e o Irmão Roberto existirá para sempre no coração dos homens. Três sempre três.
Uma antena bem acoplada pode modificar o homem. O homem modificado modifica as antenas. A ampulheta do tempo e o planeta apenas se movem em torno do sol sem se modificarem.
Ocorreu-me também que o lugar entre aqueles que tudo sabem e os que nada sabem é onde sempre estamos. Neste mundo não existem a divisão do tempo, como o passado o presente e o futuro, pois tais divisões, como pude ver, contrariam-se num momento do presente como aconteceu no Cerro Palomas, A vida tem só um verdadeiro sentido. O meigo marista e eu temos o mesmo presente. Por isso pude fazer aquele acoplamento naquele lugar. Nada está parado, tudo se move e se encontra no lugar presente. O Marista me dissera:
-Desfrutemos com carinho o agora e o antes unido..
Teria o inventor das telecomunicações, conseguido fazer esta abstração sutil do tempo enquanto me aconselhava a roubar o calor da pedra para me aquecer no pelego?
Tem sonhos que são mais importantes que a realidade e tem realidades que não valem um sonho. Ou então, os sonhos e a realidade são como o passado e o presente, fundem dentro de nós.



FIM

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